
Por Roberto Seabra—Impressiona a forma como esses três irmãos piauienses, radicados em Brasília ao longo dos anos 1960, tenham realizado obra tão singular e de tanta qualidade artística e humana. Pois, em se tratando dos irmãos Ferreira, filhos de Dona Alice, a arte não se separou da vida em nenhum momento.
Terminei de ler com assombro o livro Clodo, Climério e Clésio — A profissão do sonho, de Dea Barbosa (organização e pesquisa) e Severino Francisco (texto). Conheci os três na SQN 312 durante minha adolescência. Eles moravam no bloco F e eu no J. Enquanto eu passava os dias jogando bola, eles, imagino, liam, ouviam música e tocavam violão. Em bares e festivais.
Até que um dia conheci Chapada do Corisco, o segundo disco dos irmãos, que não formavam um trio, mas eram, antes, uma tríade, como bem definiu Severino, pois cada um era uma entidade poético-musical e que se completavam.
Vejo aqui que o disco é de 1979, portanto, eu tinha 14 anos. Não sei se os três ainda moravam na quadra ou tinham voado do ninho, mas D. Alice com certeza continuava no bloco F e eles viviam por lá. Quando escutei o LP pela primeira vez fiquei alucinado. Tudo ali era muito bom e havia na minha relação de ouvinte com a música dos três algo que não havia em relação a nenhum outro músico brasileiro ou banda de rock internacional. Havia pertencimento. Palavra bastante rebuscada, reconheço, mas não encontro outra igual.
Ouvir Clodo, Climério e Clésio no final dos anos 1970, em Brasília, era como se eu fosse um garoto no início dos anos 1960, morando em Liverpool e ouvindo Beatles, entendem? Desculpem se exagero, porque não encontro outra forma de me expressar.
Naquele tempo, ninguém emprestava disco a ninguém, no máximo permitia que se gravasse uma fita cassete. Então íamos à casa do dono do vinil e passávamos horas ouvindo o mesmo disco dezenas de vezes, até decorar melodias e letras. Aquilo era muito bom para depois cantar no acompanhamento de algum violão em festas, embaixo do bloco ou para galantear as meninas.
Foi assim que decorei Revelação (Clodo e Clésio) e Enquanto engomo a calça (Ednardo e Climério), para citar duas músicas do espetacular Chapada Corisco. Descobri então São Piauí, disco que veio antes, em 1977, e a paixão ficou completa. Ali ouvi pela primeira vez "Cebola cortada" (Petrúcio Maia e Clodo) e "Conflito" (Petrúcio Maia e Climério). Cantávamos as músicas nos esgoelando, emulando o cearense Raimundo Fagner, que fez muito sucesso com essas duas canções.
Poderia ficar aqui horas escrevendo sobre os três e o livro de Dea e Severino, mas preciso terminar. De fã, tornei-me aluno e depois amigo e colega de Clodo, sem deixar de ser a primeira coisa, pois sempre acompanhei os irmãos, juntos ou em carreira solo.
Cidade ainda nova, Brasília precisa de personagens e vivências para consolidar sua história ainda um tanto desenraizada. É incrível que os três irmãos piauienses que vieram para cá nos anos 1960 e nunca deixaram em definitivo a cidade para tentar sucesso lá fora, tenham construído algo tão lindo e sólido. Talvez, a isso também chamemos de cultura.
P.S.: O livro A profissão do sonho será lançado no Beirute, na próxima terça-feira, às 19h, com pocket show de Pedro e João Ferreira, as presenças dos autores e de Climério Ferreira