
Por Isabella Campos da Paz—1996.
Sentado em sua poltrona de couro marrom, ele me recebia em seu apartamento em Brasília, modesto e aconchegante, com a TV e os videos-cassetes sobre a mesa de madeira, cercado por estantes repletas de filmes e livros. Estava ansiosa por ouví-lo. Serviu-me um café quente, acendeu um cigarro e, em seguida, pegou uma caixinha de fósforos e, segurando-a com a mão esquerda, simulou rodar uma manivela lentamente com a mão direita, dando início à uma viagem fantástica.
"- Tudo começou com os irmãos Lumière, na França, com a invenção do cinematógrafo: uma caixinha com uma manivela, que funcionava como uma câmera de filmar, de revelar e também de projetar imagens… as primeiras cenas eram cenas do cotidiano, como a saída dos operários da fábrica em Lyon…"
Enquanto ele falava, suas mãos grandes e seus dedos compridos continuavam a se mexer lentamente, simulando o movimento circular da manivela imaginária na caixinha de fósforos. Magro, com as pernas cruzadas, tinha a barba e o bigode ralos. Apesar da voz mansa e tranquila, falava com eloquência dentro de uma discrição indescritível, abraçado por sua poltrona de couro, totalmente à vontade em seu território. Seu nome: Rogério Costa Rodrigues, crítico e professor de cinema da Universidade de Brasília.
Eu o procurara para que ele me desse um norte, pois em poucos dias eu faria um concurso que exigia conhecimentos na área do cinema, e eu me sentia uma total ignorante no assunto. As provas passaram, mas o cinema ficou. E lá voltei, em seu apartamento, para mais tardes de conversa … e mais … e mais …
Havia naquele ambiente recortes de jornais, livros, cartazes, fotos de atrizes e atores famosos, histórias de personagens diversos, e sempre as críticas contundentes de Rogério sobre tudo. Eu seguia encantada pela complexidade das narrativas e análises, inclusive do ponto de vista técnico das produções cinematográficas, completamente absorta naquela inteligência perceptiva, lúcida e sutil do Rogério. Com essas visitas, me dei por iniciada.
2025. Num domingo de agosto em Brasília, sigo para um encontro musical entre amigos. Um deles pega o microfone e canta My Way. My Way é a versão em inglês da música francesa Comme d'habitude de Claude François, que foi lançada em 1967 na França, e foi gravada por Frank Sinatra em 1968, com letra de Paul Anka, fazendo um sucesso estrondoso.
Ao ouvir My Way, lembrei-me de Edifício Master, um filme de Eduardo Coutinho, que vi anos atrás no Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, um de seus mais comoventes documentários. Caros leitores: anotem. Indico. O filme é um convite à reflexão sobre a diversidade da vida e sobre o que queremos que ela seja.
A reunião teve seu fim, My way ainda ressoava em mim. A música me levara ao filme de Coutinho, que por sua vez me fazia refletir sobre como o cinema exercia e exerce uma força muito mais poderosa no meu canto, do que o conhecimento e o domínio das técnicas vocais.
Diante desse pensamento, ao chegar em casa, não resisti: abri o YouTube e procurei uma fala que certa vez ouvi do diretor, roteirista, professor, crítico de cinema e curador de festivais: Sérgio Moriconi. Em poucos minutos encontrei-a, onde ele diz com toda propriedade: - Você tem de ir ao teatro, você tem de ver balé, porque aí você vai entender cinema!…
(Pausa)
Era 2001 quando ouvi pela primeira vez o nome de Sérgio Moriconi. Li no jornal que ele daria um curso de cinema na 508 Sul, hoje Centro Cultural Renato Russo. Corri para lá. Era noite. A sala estava lotada. Pedi licença e sentei numa das poucas poltronas que ainda restavam. Esbaforindo, olhei para o palco, e sim, encontrei um sujeito altamente falante e entusiasmado, convidando a platéia a assistir naquela noite At Land, de Maya Deren: uma viagem onírica surreal, de 1944. Era ele. Moriconi. As luzes se apagariam em poucos minutos. Flash! Breu!
- Que filme é eeesse… que desconstrói as estruturas das narrativas tradicionais, cheio de imagens simbólicas, onde tempo e espaço fluem em ritmos jamaaais imaginados por mim?
Fiquei absorta… como um bebê que no berço move a cabeça de um lado para o outro, tentando seguir um pêndulo que balança, sem jamais alcançá-lo. Maya Deren foi um marco. Um marco para o ato criativo em meu canto. E Moriconi, um "marco-amigo", que escreveu várias pós-críticas de shows meus, por ter também profundo conhecimento de música popular brasileira. Quando canto Caymmi, lá está o barco do pescador, e me permito fluir nas ondas do mar, como Deren em At Land. A manivela de Rogério nunca deixou de girar. Agora, leitor (a), é você quem a segura. Quanta arte você movimenta em sua própria vida.
Diversão e Arte
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