Por Sérgio Léo—Maria Flor adora dicionários, dos tradicionais, de papel com listas de palavras; mas acredita que as pessoas não sabem aproveitar todos os conhecimentos que há neles. Poucos notam, por exemplo, as informações existentes na própria disposição dos verbetes nas páginas; quem está acostumado a se concentrar em cada um deles, isoladamente, pragmaticamente à procura de sinônimos ou definições nem percebe que a proximidade entre eles também pode falar muito sobre cada palavra, em si.
Vale para qualquer língua. Por exemplo: no dicionário de inglês de Maria Flor, a palavra areia está ao lado de sandália, o que é uma combinação muito lógica, embora falte um verbete ao lado com dicas práticas sobre como evitar que a areia grudada nas sandálias emporcalhe o carro, ou a casa de quem vai calçado a lugares arenosos.
Também em inglês, duas palavras que, uma abaixo da outra, trazem, com sua proximidade, um ensinamento importante são "cético", logo depois de "cheiro". Fica evidente, para quem aprende a ler dicionários desse modo analógico, que o aroma pode levar as pessoas a desconfiar da verdadeira natureza das coisas, questionando as aparências — ou as imediatas impressões olfativas do que é aparente, no caso.
Aliás, no dicionário de bolso de Maria Flor, as palavras em inglês para cheiro e certeza estão separadas por mais de 250 páginas. Quem já tentou mastigar uma rosa aprendeu amargamente, na vida, o que descobriu Maria Flor pela simples leitura bem aproveitada. Ler dessa maneira o dicionário ajuda a entender por
que "isso não me cheira bem" é uma frase típica na vida de um cético.
Já, no dicionário de português, a palavra "cético" está em cima de "cetim", o que poderia levantar algum ceticismo sobre a utilidade de ler o dicionário dessa forma. Mas "ceticismo", que vem logo acima, está abaixo de "cetáceo"; e aí é um aprendizado valioso notar que o primeiro desconfiado a ver uma baleia deve mesmo ter duvidado da existência de bicho tão paquidérmico, sem tromba, patas ou terra firme por onde andar. Mas os cetáceos existem, como comprova o verbete.
Ou seja, ser cético não implica em ter razão em todas as dúvidas. Grande lição, escondida dos mais apressados ao folhear o dicionário. Já "cheiro" e suas variações ficam logo em seguida a "cheia" e "cheio", o que nos leva a pensar, por exemplo, que, por maior que seja a paixão, o perfume de um casal pode acabar fazendo com que os amantes acabem se enchendo um do outro, ou da outra. Há que se encarar essa interpretação, porém, com algum ceticismo, palavra que, no dicionário em português, vem meia dúzia de páginas antes.
"Areia", no dicionário de português de Maria Flor, fica abaixo de "arefação", que é o ato de secar alguma coisa para reduzi-la a pó. E, nesse caso, temos de admitir que ler dicionários dessa forma pode ser uma experiência bem árida.
Interessante descobrir que "sandália" tem, em cima, "sandaba", palavra usada na Bahia para designar uma peça de rede de pescar. Isso, em duas palavras, nos dá uma imagem poeticamente bem calçada de um baiano capaz de tirar seu sustento das águas do mar.
O confronto de dicionários de várias línguas, nesse modo de leitura, nos permite ver as diferenças culturais mais claramente, e aprender com a experiência linguística de outros países, conclui Maria Flor. É uma pena que o fim dos dicionários impressos, substituídos pelas páginas na Internet, e, agora, pela inteligência artificial, ameace extinguir importantes fontes de informação, de enorme utilidade nessa arte imprescindível da associação das palavras.
