Crônica

Importa pensar nas mulheres negras que escrevem no Brasil

A primeira mulher negra a impor sua presença de escritora em um meio elitista (e branco), que viesse de uma e contasse as histórias da favela em Quarto de Despejo — Diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus, viveu o confronto com a incredulidade alheia

Waleska Barbosa- ARTIGO: Importa pensar nas mulheres negras que escrevem no Brasil 

 -  (crédito: Gilberto Soares)
Waleska Barbosa- ARTIGO: Importa pensar nas mulheres negras que escrevem no Brasil - (crédito: Gilberto Soares)

Por Waleska Barbosa— A literatura de autoria feminina negra padece, no Brasil, de uma certa síndrome da Geni, a personagem buarqueana que ora é louvada, ora é execrada por ser quem é. As mulheres negras ocupam espaços, mas nem todos e nem sempre. Ouso dizer que, comumente, não são advindos da consciência racial ou que apontam para o fim do racismo estrutural. Mas existem como intermitências, lapsos, lampejos.

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Acontecimentos pontuais. E não processos. Continuidade. Por vezes, são esquecidas, as pretas que escrevem. Penso que cada conquista, cada passo, cada ocupação é fruto de suas próprias lutas, insubmissões, movimentos, movimentações e militâncias.

Movimentar-se, para elas, significaria resvalar entre o permitido e não permitido. Entre um tempo que lhes confere autoridade para existir e o ponto em que serão julgadas pela cor de pele e postas em dúvida, sob suspeita. Foi o caso da autora Lilia Guerra, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, quando a pousada em que se hospedou disse que objetos do seu quarto teriam "sumido" e, pedido o reembolso. Entrou autora aclamada, saiu acusada de ladra.

Estivessem ainda caladas diante de sua invisibilização, não seriam convidadas. Não gritassem, continuariam não premiadas. Não transformassem o medo em seu contrário, como diz Conceição Evaristo, não teriam seus escritos para fora da gaveta, como ela mesma os teve. Não teriam a primeira delas, Ana Maria Gonçalves, a ser eleita para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 128 anos de história.

Da que é considerada a primeira romancista negra brasileira, Maria Firmina dos Reis, tão desconhecida ainda, há uma imagem com feições de uma pessoa branca.

A primeira mulher negra a impor sua presença de escritora em um meio elitista (e branco), que viesse de uma e contasse as histórias da favela em Quarto de Despejo — Diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus, viveu o confronto com a incredulidade alheia.

Há a que personifica o que acontece quando escreve, embarca na publicação independente, distribui seus livros em projetos sociais  mas não há leitores. Então, quase três décadas depois, um exemplar é encontrado, lido por um crítico literário e alçado à posição em que sempre esteve — a de um grande livro, considerado dos maiores do final do século passado. E ela, Verenilde Pereira, considerada uma autora afroindígena de primeira grandeza. Um rio sem fim, lançado em julho, já viajou muito de lá para cá. Verenilde também. Levantamento indica que hoje o Brasil abriga mais de 300 eventos literários, que tendem à interiorização. São cidades que reivindicam ou são reivindicadas para — aclamar suas próprias histórias, literaturas, autoras, oralidades.

Ainda assim, há o risco de que restrinjam a autoria das filhas das terras, confinem seus corpos-territórios e as nomeiem como programações locais, regionais o que é todo delas. Mas elas mesmas fazem seus eventos, encontros, festas e festivais. Tornam-se escritoras, uma vez que já tornadas mulheres negras. Enchem folhas de papel e fazem um objeto livro que fica de pé porque lhes interessa que seus livros fiquem de pé e que suas palavras voem.

O Brasil se torna um país mais não leitor do que leitor. Mas entre os que leem e compram livros, as mulheres, vejam só, são a maioria. Entre as que escrevem, mesmo diante da frequente acusação de identitarismo, há a importância do livro de Adelina Benedita, Memórias de menina, com as histórias da Paracatu (MG) negra em que nasceu.

Para quem a historiografia oficial não olhou, para quem teve suas histórias não contadas, para quem não pôde falar, para quem não foi alfabetizada — importa falar, importa escrever, importa publicar, importa ser lida, importa ser traduzida, importa ser premiada, importa ser laureada, importa ser homenageada, importa ser enredo de carnaval, importa ser filme, importa usar o microfone, importa subir no palco, importa viver e receber flores em vida. Importa a palavra. NEGRA. Importa.

 


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postado em 07/11/2025 06:00
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