Crônica

A Rodoviária do samba

A Rodoviária do Samba, assim batizada, completa dezenove anos de projeto e é um marco importante na história do samba brasiliense, porque consegue reunir sambistas de todas as cidades satélites, do profissional ao amador

A Rodoviária do Plano Piloto é a maior encruzilhada de Brasília. E, não à toa, abriga a tradicional roda de samba que acontece todo dia 2 de dezembro, em comemoração ao Dia Nacional do Samba. Por questões burocráticas, este ano essa grande celebração aconteceu nessa quinta-feira (18/12), dezesseis dias depois do previsto, mas para quem é do samba todo dia é dia de saudá-lo, de pedir licença, de agradecer pelo zelo na caminhada de seus amantes e adeptos.

A Rodoviária do Samba, assim batizada, completa dezenove anos de projeto e é um marco importante na história do samba brasiliense, porque consegue reunir sambistas de todas as cidades satélites, do profissional ao amador. E a gira se forma de gente. Gente da correria do ir e vir da Rodoviária: quem está voltando para casa, indo para o trabalho, saindo de uma consulta, tentando aliviar um dia estressante — enfim, vivendo a rotina de mais um dia.

De repente, é como uma voz sussurrando ao ouvido. O samba parece chamar quem, de longe, escuta o ecoar dos tambores e das cordas. É um chamamento. Nessa hora não tem jeito: por mais que o ônibus ou o metrô esteja quase saindo, quem não resiste ao samba acaba parando para olhar. O som do samba é convidativo, é comunitário.

Essa festa revela o tamanho dessa tribo que, na última semana, culminou com dois grupos de Brasília, Menos É Mais e Grupo Benzadeus premiados no importante Prêmio Multishow de Música Brasileira. Só isso já seria suficiente para mostrar como, em 65 anos, Brasília conseguiu construir um movimento sólido, com muitos caminhos ainda a serem percorridos. Mas, antes do prêmio, muita gente já batucava nesse Planalto Central.

É impossível falar de samba — esse velho Orixá — sem falar de ancestralidade, sem exaltar mestres e mestras que ajudaram a consolidar a trajetória do samba por aqui. São tantos que, para evitar a tragédia de esquecer algum nome, não irei nominá-los. São fundadores e fundadoras, pioneiros e pioneiras que levantaram a bandeira "no tempo do samba, sem grana e sem glória". Gente que, com muito amor, conseguiu por um bom tempo criar e manter escolas de samba em quase todas as regiões administrativas.

Brasília é feita de RA's com múltiplas manifestações culturais. E é exatamente esse turbilhão de gente vinda de todos os estados que misturou, deu cor e deu vida ao nosso samba. Muitas vezes tentam comparar o samba daqui com o samba de outros lugares, mas, sinceramente, a comparação quase sempre atrapalha. As construções culturais são diversas, e não podemos esquecer das incontáveis transformações pelas quais o samba passou e ainda passa ao longo do tempo.

Diferente das capitais do chamado "velho eixo cultural", onde as escolas de samba funcionam como fomentadoras permanentes do gênero nas comunidades ao longo do ano, aqui em Brasília, por questões burocráticas e de politicagem — tanto do poder público quanto das próprias agremiações — houve um enorme apagamento das escolas. Isso prejudicou profundamente a descentralização do samba e freou um avanço que, mais cedo ou mais tarde, acabou vindo pelas mãos de sempre: de quem faz, de quem carrega esse amor inexplicável e movimenta a cena.A Rodoviária do Samba é também um retrato desse movimento. A cantora Cris Pereira, figura fundamental do samba brasiliense, ao lado da produtora Tâmara Jacinto e do músico Guto Martins, carregam desde 2006 a produção dessa roda, junto com tantos outros personagens que ajudam a manter essa tradição viva.

Por muito tempo, a identidade do samba brasiliense também sofreu com uma produção fonográfica tímida, em grande parte por questões econômicas. A criação do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) foi um divisor de águas, abrindo caminhos e possibilitando inúmeros registros. Muitos sambistas conseguiram, enfim, tirar seus sambas da gaveta. Isso fez com que essas músicas chegassem ao público, retratando o cotidiano da cidade e fortalecendo a perspectiva da criação local.

Recentemente, o lançamento do disco Plataforma do Samba - Primeira Parada, composto exclusivamente por compositores da cidade, reafirmou essa diversidade e potência. Um registro fundamental da nossa identidade. Grupos e coletivos fizeram, e seguem fazendo, o trabalho de formiguinha, levando o samba a todos os cantos e inspirando novas gerações.

O Clube do Choro e a Escola de Música de Brasília também tiveram papel fundamental na formação e qualificação dos músicos locais, ampliando o reconhecimento do músico brasiliense país afora. Ao longo desses dezenove anos do, foram esses discípulos que fizeram de tudo para que não deixássemos de celebrar nossos ancestrais nessa grande encruzilhada da cidade.

A Rodoviária, esse espaço que deveria ser plenamente público, infelizmente entrou no vendaval das privatizações. Mas o nosso samba não se privatiza. Ele é do povo para o povo, não tem dono. É seu, é meu, é de quem ama e sabe o quanto esse gênero consegue explicar o Brasil como nenhum outro.

A Rodoviária do Samba persiste e seguirá sendo esse ponto de encontro de trabalhadores e trabalhadoras do Distrito Federal. É o povo do samba, pelo samba do povo.

 

Breno Alves, Sambista, Jornalista e Compositor

 


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