Entrevista

"Arcabouço já nasceu morto", afirma Marcos Lisboa

Economista, que já foi secretário de política econômica do primeiro governo Lula, critica a atual condução da economia

Marcos Lisboa: preocupação com gastos públicos, que era a médio prazo, está virando de curto prazo -  (crédito:  WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO)
Marcos Lisboa: preocupação com gastos públicos, que era a médio prazo, está virando de curto prazo - (crédito: WERTHER SANTANA/ESTADÃO CONTEÚDO)

O aumento de arrecadação sem olhar para o lado das despesas é uma receita que pode ser amarga a longo prazo. Com essa visão, o economista e ex-presidente do Insper, Marcos Lisboa, acredita que o projeto econômico do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva já nasceu condenado ao fracasso. Desde a chamada PEC da Transição, que permitiu que o governo gastasse R$ 145 bilhões para além do então teto de gastos vigente, o economista, que inclusive atuou com Lula na Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, entre 2003 e 2005, se manifesta contrariamente à política fiscal da gestão de Fernando Haddad. 

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Às vésperas do último ano de mandato, o governo Lula se vê em uma encruzilhada. Expandir os gastos com benefícios sociais com vistas a alavancar a popularidade antes da disputa eleitoral, ou reduzir os gastos para reforçar o compromisso com a austeridade fiscal. Para Lisboa, a segunda opção é a menos factível. "O governo não quer controlar (os gastos)", disse, em entrevista exclusiva. O economista participou como painelista de um evento promovido pela GCB Investimentos, em São Paulo, no último dia 29, onde atendeu o Correio.

O ex-presidente do Insper ainda comentou sobre o projeto de lei que isenta o Imposto de Renda (IR) para os contribuintes que recebem até R$ 5 mil e estabelece uma isenção parcial para os que ganham até R$ 7.350. Ele acredita que o governo não está enfrentando a agenda tributária como deveria e disse que a tributação sobre dividendos não resolve a questão da desigualdade no país. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa:

O governo fala muito em justiça tributária, ainda mais com a discussão sobre o Imposto de Renda. Na sua visão, esse projeto para o IR é sustentável a longo prazo e o governo acerta em investir nisso?

Se o governo estivesse fazendo isso, eu acharia ótimo. Só que não é isso que o governo está fazendo. O governo não está enfrentando a agenda tributária. Isso é muito mais narrativa do que fato. Por exemplo, no Brasil, você fica em uma confusão entre o tamanho da empresa e o tamanho do acionista. Você pode ter uma empresa grande e um acionista pequeno. Por exemplo, os fundos de pensão da Previ e outros são de grandes acionistas de grandes empresas. Mas o pensionista da Previ não está exatamente no grupo dos milionários. Por outro lado, você pode ter empresa pequena e média, com acionista grande. Seja no simples, seja no presumido. Você pode ter uma pessoa que tenha uma renda de R$ 3 milhões por ano — vamos combinar que ela está no grupo dos mais ricos — ou pode ter uma renda de R$ 20 milhões de reais por ano, mas está no simples ou no presumido. Paga menos imposto. Então tem essa confusão do tamanho da empresa e do tamanho da acionista. 

Então, na sua visão, o governo não está enfrentando esse problema? 

Acredito que não. Tem esse discurso falso de que lucro no Brasil não paga imposto. Paga, sim. O dividendo é o lucro que já pagou imposto. Então a Receita, vez por outra, solta os dados falando sobre a desigualdade, mas ela só leva em conta o imposto pago na pessoa física. Ela esquece que o lucro pagou o imposto na pessoa jurídica. Onde está a distorção? A distorção é que o lucro real tem uma alíquota mais alta. O lucro presumido e simples tem uma alíquota muito baixa. O simples, então, é quase nenhum, e mesmo que a pessoa seja muito rica. Então a desigualdade começa com essa concepção do sistema. Se você tentar corrigir só na questão dos dividendos, você não resolve a desigualdade.

Com as despesas obrigatórias em alta, o orçamento nos próximos anos fica cada vez mais sufocado. Por que o governo não consegue controlar esse avanço?

Não, mas o governo não quer controlar. O governo tem expandido os gastos. É uma decisão do governo. O governo voltou com a vinculação de várias despesas, por exemplo, à receita. Então, se aumenta a arrecadação, a despesa tem que aumentar. E essa foi uma decisão do governo na época da transição. O governo tem criado uma série de fundos para estimular investimentos, tem concedido vários programas novos em diversas áreas, infelizmente, com baixa avaliação de impacto. Então, o governo tem resolvido aumentar a despesa. 

Então, na sua avaliação, o arcabouço fiscal já nasceu como um fracasso?

Já veio. As regras que vieram com a PEC da transição e com o arcabouço não deixavam claro, não se fazia as contas que ela era inconsistente. Na semana que saiu o arcabouço, eu e o Marcos Mendes, fizemos um longo artigo fazendo todas as contas e, realmente, não tem como. Você pode aumentar as receitas o quanto você quiser, não vai comprimir as discricionárias. O que o governo tem feito nesse período? Ele tem usado uma contabilidade criativa para algumas despesas não fazerem parte do limite, e mascarar o tamanho do problema. O déficit primário que o governo anuncia hoje, eu confesso que eu nem olho mais. Porque é tão distante do déficit primário verdadeiro que perdeu o sentido. Inclusive, as contas do Tesouro são até diferentes das contas do Banco Central. Então, você está usando truques para dizer que está com o arcabouço, quando na verdade está muito distante. Agora o arcabouço já nasceu morto. 

Mas o governo agora busca levar à frente um projeto para abrir espaço fiscal por meio do corte de despesas, ao mesmo tempo que também quer elevar a taxação de bets e fintechs. Qual a sua avaliação sobre isso?

O governo, no fundo, está em uma agenda de expandir despesa, está aumentando a receita de uma maneira bastante desorganizada, sem uma boa estratégia tributária, e isso aumenta as distorções da economia. Então, você está tentando dizer que está cumprindo as obrigações no curto prazo e não está, mas está criando novas distorções para a economia no longo prazo. Eles já viram isso. Nosso sistema tributário muito atrapalhado, não surgiu do nada. Em outros governos também. Se tem que aumentar a receita, dá um jeito. Aí vão dando um jeito. Só que esse jeito gera uma série de distorções microeconômicas que prejudicam a produtividade. Veio uma surpresa na pesquisa de economia das últimas décadas, de como o que parecem ser pequenas distorções microeconômicas, um setor paga menos um imposto que o outro, um setor tem uma tarifa de proteção de competidor externo maior do que o outro, alguém tem um crédito consignado e outro não tem, isso que parece que é pequeno explica a maior parte do porquê que alguns países são pobres e outros são ricos.

Há um debate entre economistas se a inflação que o Brasil vive atualmente é de demanda ou de oferta, e isso impacta na percepção sobre os juros. De que maneira o senhor enxerga isso?

Eu acho essa discussão completamente surrealista. Inflação é excesso de demanda. Você pode ter um choque de oferta, você pode ter uma demanda crescendo, por estilo do governo. Inflação é excesso de demanda. E você tem que combater a inflação com juros. É a maneira mais saudável de combater a inflação, porque você não tem os efeitos secundários da inflação. Mesmo que seja um choque de oferta, ou seja, deu uma safra ruim, o preço do alimento sobe. Então você pode falar: 'Não, então o preço do alimento subiu porque quebrou a safra'. Mas o problema é que se tem um efeito de contaminação desse aumento dos preços sobre os demais preços da economia. Então o papel da política monetária é exatamente evitar esse efeito de repercussão de aumento de preço sobre os demais. E tem um trabalho recente que o Carlos Viana, que foi diretor do Banco Central e outros coautores, que eles pegam uma quantidade impressionante de preços de produtos, olham e avaliam a política monetária, vários modelos econométricos, ao longo de muitos anos. Se a política monetária é complacente com a inflação e ela fica acima da meta, por exemplo, o custo de voltar a botar a inflação em ordem, aumenta várias vezes. Fica muito mais socialmente custoso botar a inflação em ordem. Então, complacência com inflação não é uma boa prática. 

O PIB este ano deve ficar novamente próximo a 2%. O que explica esse avanço tão baixo da economia brasileira?

Crescimento econômico não se avalia por esses dados de curto prazo. Se pegar os 40 anos entre 1980 e 2019, o Brasil teve 26 anos de crescimento de 3%. Vinte e seis, não é pouco. Agora, teve 14 anos de crise. E o resultado médio é uma economia medíocre. O Brasil é uma economia medíocre. A gente não consegue acompanhar as novas tecnologias. A gente não consegue acompanhar o que de melhor se faz no mundo em diversos setores. O agronegócio é uma exceção. No agro, a gente tem uma liderança em tecnologia e em produtividade. Em algumas áreas de computação, também, nós somos. Mas na grande maioria dos setores, o Brasil é um país atrasado. A tecnologia vai mudando, a forma de gestão vai mudando, os tipos de produtos vão mudando. Mas no Brasil, isso não acontece.

E por que isso não acontece?

Porque a gente tem uma economia protegida. A gente tem uma economia que favorece a empresa ineficiente em relação às melhores práticas do resto do mundo, em que empresas quebram e ficam anos em recuperação judicial e o judiciário protegendo e aquele capital e aquelas pessoas ficam trabalhando de maneira menos produtiva. Isso baixa a competitividade da economia brasileira. Então, a intervenção judiciária na recuperação judicial, as proteções de comércio exterior, as funções tarifárias, tudo isso faz com que a produtividade média da economia brasileira cresça menos em termos dos demais países. Agora mesmo tem a discussão sobre a Cide (Contribuição sobre Intervenção no Domínio Econômico) de tecnologia. E aí tem um argumento que é aquele argumento ingênuo que diz: 'Não, a gente tem que desenvolver a tecnologia brasileira, então tem que ter a Cide sobre importar a tecnologia'. E aí não é só a tecnologia. Vale para streaming, vale para várias outras coisas. Isso é um argumento absolutamente disparatado. A gente não tem escala para isso. 

O que deu errado para o Brasil não crescer como outros países que eram emergentes, como a China e a Índia?

A China fez tudo diferente do Brasil. Ela investiu imensamente em tecnologia, em capital humano e em universidades. Ela formou gente. E a China é uma economia que vende para o mundo. O Brasil é o contrário. O Brasil da indústria é o Brasil fechado, que faz coisas que só podem ser vendidas no Brasil. Pega o carro popular. Você não vai ter escala para esse carro popular, porque ele não é comprado na imensa maioria dos países. Então, ele fica restrito ao mercado brasileiro. É um carro que só sobrevive pelo subsídio. Vai ser um carro pior e vai ser um carro mais caro. E você não tem acesso às melhores tecnologias lá de fora. Você impede, por exemplo, os bens de capital mais modernos, as máquinas mais eficientes. Isso fica caro para trazer para o Brasil. Isso contamina toda a produção brasileira. 

Mas não há alguma exceção que dê para destacar?

Um setor que a gente fez como na China foi o agronegócio. No agronegócio, a gente formou gente. O que a Embrapa fez? Formou dois mil técnicos a partir dos anos 1970, das melhores universidades, para pesquisar e desenvolver tecnologia. Como é que eu melhoro o solo do centro do Centro-Oeste? Como é que eu consigo adaptar a soja naquela zona temperada para uma zona tropical? Então, você investiu em tecnologia, em gente, e com uma agricultura voltada para o mundo. Se ela tem escala, ela vende para o mundo. Então, o que o sucesso do negócio está muito relacionado com o tipo de política pública que foi adotada lá, da mesma maneira que a política inversa que foi adotada para a indústria está associada ao fracasso da indústria. 

O chamado 'Custo Brasil', que corresponde ao gasto necessário para se investir no país com empreendimentos, é muito oneroso. O que fazer para reduzir isso?

Eu acho engraçado que o setor empresarial critica o Custo Brasil, mas ele é o responsável pelo Custo Brasil. Ele defende o crédito subsidiado, os lobbies defendem a proteção do comércio exterior, os lobbies defendem tomar uma recuperação judicial e não ter os bens arrestados como previsto em contrato. Então, no fundo, o Custo Brasil é resultado de um lobby privado que pede proteção e favores do Estado, que gera essa economia incrivelmente distorcida. Você fala: 'O juros no Brasil é alto'. É alto para quem? Para o agronegócio que pega crédito subsidiado do governo? Não. Para a indústria que pega crédito subsidiado do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ou do Banco do Nordeste? Nem tanto. Você vê que é esse Brasil todo desigual que gera essas distorções. E você tem um estado que atende o setor privado. Então, no fundo, o atraso brasileiro, o Custo Brasil, é resultado de um setor privado oportunista e um estado que cede ao oportunismo.

 

 

 

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postado em 10/11/2025 04:27
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