
A atualização do caos na arbitragem brasileira atingiu níveis inaceitáveis nas últimas duas rodadas com erros em série. O maior deles, o pênalti não marcado a favor do São Paulo na derrota de virada para o Palmeiras, por 3 x 2, no MorumBis. Allan derrubou o atacante argentino Gonzalo Tapia dentro da área e o árbitro Ramon Abbati Abel ignorou a falta. O Tricolor vencia por 2 x 0. Houve falhas graves também na derrota do Red Bull Bragantino para o Grêmio, no revés do Botafogo diante do Internacional e em partidas da rodada anterior.
Em meio à crise, quatro especialistas entrevistados pelo Correio Braziliense apontam, a seguir, problemas e algumas soluções em nome da credibilidade da arbitragem e do jogo. A reportagem separou 10 temas abordados pelo ex-árbitro e comentarista Arnaldo Cezar Coelho, mediador da final da Copa do Mundo de 1982; pelo professor e ex-árbitro Rafael Porcari, autor do site Pergunte ao Árbitro; Evandro Rogério Roman, ex-juiz e ex-deputado federal; e Jorge Paulo Gomes de Oliveira, assistente do DF na Copa de 2002 no Japão e na Coreia do Sul e árbitro no DF por 13 anos.
Arnaldo Cezar Coelho considera o sistema de arbitragem do país falido e aponta falta de comando. Rafael Porcari destaca a ausência de uniformidade nos critérios e a necessidade de criação de uma Escola Nacional de Árbitros. Jorge Paulo vai além. Ele cita a Universidade da Arbitragem do Chile e atribui a carência de instrutores qualificados á politicagem. Evandro Roman diz que a profissionalização existe, mas não interessa à CBF. Segundo ele, o problema a ser atacado é a inexperiência de quem opera as ferramentas do VAR.
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Uniformização de critérios
O professor e ex-árbitro de futebol Rafael Porcari aponta a incoerência como inimiga do apito. "Falta uniformização de critérios e o cumprimento das regras como no restante do mundo. Nós temos vários vícios de arbitragem", critica. Juiz da final da Copa do Mundo de 1982 na Espanha, o ex-comentarista Arnaldo Cezar Coelho concorda: "Não tem comando. A solução é trocar tudo. Com o tempo, essas pessoas que estão dirigindo a arbitragem não mostraram incompetência para dirigir um grupo de árbitros e impor recomendações. Os árbitros estão fazendo o que querem e ninguém chama atenção. Falta referência, pessoa com autoridade", reforça.
"Enquanto lá fora, especialmente a Premier League, pedem para que os árbitros de vídeo sejam rápidos, e que, ser for lance inconclusivo ou de resolução demorada, respeite-se a decisão de campo, aqui é: 'fique o tempo que ficar, mas tome a decisão correta. Chega-se a ficar cinco minutos diante do VAR e ainda decide-se errado". Não há um VAR tão intrometido como o que temos no Brasil, compara Porcari.
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Instrução qualificada
Rafael Porcari coloca o dedo em uma das feridas. "Qualquer árbitro que encerra a carreira passa a ser automaticamente instrutor da CBF. Grandes instrutores de árbitros da CBF não eram grandes árbitros ou nem árbitros foram. Eram estudantes da regra, mas instrutores gabaritados da Fifa. Não temos que nos apegar a nomes. Ter nome não quer dizer que será um grande dirigente de arbitragem", critica. Assistente na Copa de 2002 representando o DF, Jorge Paulo de Oliveira Gomes endossa com a experiência de ex-instrutor da Fifa. "A gente se depara com situação de politicagem. São escolhidos aqueles que são amigos e fazem parte de um grupo. A consequência vem. A instrução é fator fundamental para o que vem acontecendo. Precisamos de um corpo docente que dominem conteúdo, situação de campo e as regras. Não está melhorando. A cada campeonato estamos voltando para trás".
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Farra do escudo Fifa
Dois dos três especialistas ouvidos pelo Correio Braziliense defendem mudança radical na Comissão de Arbitragem da CBF. Nos últimos anos, o cargo passou pelas mãos de Leonardo Gaciba, Wilson Seneme e Rodrigo Cintra. "É preciso mudar nomes, uma nova Comissão de Arbitragem com carta branca para não se apegar a acordos políticos. Nós sabemos que a CBF adora costurar acordos com federações e outros nomes aí...", ataca Rafael Porcari, com uma dura crítica a alguns procedimentos nos bastidores.
"O que são esses acordos? Nós temos árbitros sem condição de estar na Série A, mas que vão para agradar federações. Há uma farra da distribuição de escudos da Fifa. Você tem vários bandeiras, vários 'VAR's', que ostentam o escudo Fifa ou são aspirantes, mas são de estados da federação sem tanta tradição. Temos que prestigiar os melhores, independentemente de acordos políticos. A meritocracia precisa voltar à CBF".
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"Daronquização"
A seleção dos árbitros para também é apontada, inclusive uma certa "daronquização". "Nós temos muitos problemas com a escolha dos árbitros. Há uma falsa impressão de que o grandão, fortão, marombado, o famoso 'Daroncão', é o árbitro ideal. Não precisamos de árbitros fotogênicos, modelos. Repare: acabaram os árbitros mirrados, baixinhos e também os negros. Esse é um detalhe importante. Nós tivemos, no passado, a filosofia de que um árbitro tinha que ser imponente em campo. Aí nós vemos 'bananões' apitando e árbitros com o perfil do Paulo César de Oliveira, magrinho, baixinho e negro, não tendo oportunidade, critica Porcari.
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Escola Nacional de Árbitros
"Não é mais suportável que as federações formem os árbitros e os entreguem à CBF. Cada uma forma o árbitro de um jeito", questiona Rafael Porcari. "A regra é uma só, mas precisamos ter uma Escola Nacional que forme os árbitros e uniformize os critérios. Jorge Paulo de Oliveira Gomes cita . "O Chile tem uma Universidade de Árbitros. Os juízes vizinhos da América do Sul estão um degrau acima dos nossos".
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Supérfluo
Para Arnaldo Cezar Coelho e Rafael Porcari, o Comitê Consultivo de Especialistas Internacionais (CCEI), criado na gestão de Ednaldo Rodrigues, é desnecessária. Fazem parte três ex-árbitros de Copa do Mundo: o argentino Néstor Pitana (Argentina), o italiano Nicola Rizzoli (Itália) e o brasileiro Sandro Meira Ricci.
"Opinar em cima de VT não dá certo. Fiz isso por muitos anos para a tevê portuguesa e não para a federação portuguesa. Não dá certo. Você tem que conviver, ver a arbitragem, o contexto, árbitros mal escalados, número pequeno de árbitros, diz Arnaldo.
"O CCEI faz um papel desnecessário. Para dizer que foi pênalti do Palmeiras a favor do São Paulo, não precisa do árbitro de final de Copa do Mundo. Parece mais uma medida demagógica do que funcional. É chover no molhado", identifica Porcari. Em um recente relatório, eles elogiaram a arbitragem no primeiro turno com 99% e acerto nas decisões.
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Inexperiência no VAR
Ex-árbitro, ex-deputado federal e hoje empresário, Evandro Rogério Roman vê problemas graves nas escalas. "Precisamos melhorar a questão do VAR. Não dá para dizer que o Ramon Abatti Abel não é um excelente árbitro. Quem tem que socorrer o árbitro em um momento como aquele (pênalti de Allan do Palmeiras em Tapia do São Paulo) é o VAR. Precisamos ter pessoas mais experientes no VAR, com mais essência, entendimento do espírito do jogo. Quem tinha de socorrer o Abatti e chamar era alguém mais experiente. Quando se tem pessoas fracas no VAR, o árbitro de campo fica inseguro. A partir do momento em que pegarmos ex-árbitros com renome internacional e colocarmos no VAR, será fantástico. Do contrário, pode ter certeza que os problemas vão continuar. O problema não está dentro de campo, mas no VAR (em quem opera)".
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Profissionalização
Evandro Roman acompanhou de perto o debate sobre a profissionalização do árbitros nos tempos de parlamentar. "A lei que dá profissionalização ao árbitro de futebol foi a 12.867, de 10 de outubro de 2013, que reconheceu e regulamentou a profissão, mas foi revogada pela Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023, a qual trouxe novas diretrizes para o setor. A legislação anterior buscava melhorar as condições de trabalho e permitir que os árbitros se dedicassem integralmente à profissão, embora eles fossem considerados prestadores de serviços e não tivessem vínculo formal". O PL 864/19 parou no senado. Passou pela Comissão de Esportes e está na Comissão de Assuntos Sociais (CAS). "Eu sou muito cético. A CBF não quer arcar com nada disso. O grupo é grande e a CBF não quer essa despesa", endossa Jorge Paulo Gomes de Oliveira. Tentei instituir isso várias vezes como presidente da Anaf. Fizemos várias audiências no Congresso", lamento.
Evandro Roman concorda: "Não há interesse de manter vínculo trabalhista. É muitas vezes melhor pagar por RPA (Recibo de Pagamengo Autônomo) do que profissionalizar. É uma oportunidade de o atual presidente (da CBF, Samir Xaud) enfrentar e colocar a mão nesse 'vespeiro'. Isso traria maior segurança.
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Sistema falido
Arnaldo Cezar Coelho é duro. "O sistema é falido. Há uma impunidade no futebol brasileiro. Os treinadores falam o que querem, trabalham à beira do campo fazendo como querem. A própria Fifa autoriza que apenas os capitães falem com o árbitro. Os jogadores estão conversando demais, impunes. Com os recursos que a CBF tem para investir na arbitragem, e não melhora, é porque tem alguma coisa errada. Falta renovação planejada. Tem árbitro de cinquenta e tantos anos apitando, critica".
No último domingo, o árbitro Felipe Fernandes de Lima caiu desacordado em um campo de futebol amador na cidade de Brumadinho, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, 12 horas depois de mediar a vitória do Corinthians por 3 x 0 contra o Mirassol na Série A.
"Isso é um cara que é chamado, ganha um dinheirinho a mais, aí vai aproveitar a fase. Foi irresponsável. Acabou o jogo 23h, 0h, ele deve ter dormido mal, se alimentado mal. É juiz que está sendo observado. Não tem comando, esse que é o problema", reforça Arnaldo.
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Modelo ideal
O professor e ex-árbitro Rafael Porcari aponta o Campeonato Inglês como modelo ideal para a refundação da arbitragem brasileira. "A Premier League tem um modelo que funciona muito bem. Primeiro, que é uma liga, ou seja, não está atrelada à Football Association (FA). Não fica refém. Se você fica refém da Confederação Brasileira de Futebol, há medo de veto, de um monte de coisa. Quando você faz parte de uma liga, todos querem uma arbitragem melhor. É uma ilusão liga no Brasil. Lá, os (árbitros) são profissionais. Treinam, entregam relatórios semanais e apitam no fim de semana. Você tem um número fixo de árbitros, rebaixamento. Há descenso, como se fosse um campeonato à parte entre os árbitros", observa o especialista.
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