Por Janguiê Diniz*
Um dos pilares da Constituição Federal de 1988 é a clareza na definição de competências do Estado brasileiro. No campo da educação superior, cabe ao Ministério da Educação (MEC) regular, supervisionar e avaliar os cursos e instituições de ensino. Trata-se de um princípio que garante segurança jurídica, estabilidade institucional e, sobretudo, a proteção dos estudantes e da sociedade em relação à qualidade da formação oferecida.
Apesar disso, tem sido cada vez mais frequente a tentativa de conselhos profissionais extrapolarem suas funções legais, invadindo um espaço que não lhes pertence. O fenômeno não é novo, ignorando o fato de que as competências dos sistemas de ensino e dos conselhos não são concorrentes, mas complementares.
Para que não reste dúvida: aos primeiros, cabe assegurar a qualidade da formação; aos segundos, fiscalizar a prática ética e técnica dos profissionais já diplomados. Essa lógica deveria ser suficiente para colocar um ponto final em qualquer discussão. No entanto, o que se observa hoje é a intensificação de ingerências indevidas por parte desses conselhos.
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É inegável a importância dos conselhos profissionais para a sociedade brasileira. Criados por lei, são autarquias com a missão de zelar pelo exercício ético e responsável das profissões regulamentadas. A eles cabe conceder o registro profissional ao egresso que apresente diploma válido e fiscalizar o cumprimento das normas por parte de seus inscritos. Essa atribuição, quando cumprida com rigor e transparência, é essencial para proteger a sociedade de práticas abusivas, negligentes ou antiéticas.
Entretanto, não é papel dos conselhos interferir na organização dos cursos de graduação, tampouco impor condições para sua oferta ou validade. Quando o fazem, agem fora dos seus limites e desrespeitam o princípio da legalidade que rege toda a administração pública. É importante lembrar que, como autarquias, os conselhos só podem atuar dentro do escopo claramente definido pelas leis que os criaram.
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Exemplos de abusos não faltam. Há registros de conselhos que negaram inscrição profissional a egressos de cursos reconhecidos pelo MEC, sob o argumento de que a carga horária de estágio não era suficiente ou de que a modalidade de ensino (em geral, a distância) não atendia a critérios estabelecidos pela própria autarquia. Houve ainda episódios de campanhas publicitárias, como a do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) contra cursos de enfermagem a distância, que induziram a sociedade ao erro e foram suspensas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
Recentemente, outra prática preocupante tem sido identificada: a emissão de resoluções, ofícios e normas com o objetivo de influenciar o funcionamento das instituições de educação superior, especialmente quanto a estágios, estrutura curricular e até diretrizes pedagógicas. Essa atuação é ilegal, pois ultrapassa os limites das competências atribuídas aos conselhos profissionais, interferindo em áreas que são prerrogativas exclusivas da autonomia universitária e do Ministério da Educação.
Fato é que o MEC possui instrumentos eficazes para avaliar a qualidade da formação oferecida pelas instituições de ensino superior. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), conduzido pelo Inep, aplica mecanismos como as avaliações institucionais e de cursos, além do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). Recentemente, somaram-se a esses instrumentos o Enamed, voltado à Medicina, e o Exame das Licenciaturas, fortalecendo ainda mais o processo avaliativo.
Portanto, é absolutamente desnecessário criar exames de proficiência paralelos, como os que alguns conselhos têm defendido no Congresso Nacional. Além de gerar uma sobrecarga desnecessária nos estudantes, essa medida desrespeitaria a atribuição constitucional do Ministério da Educação.
Em outra frente, essa questão toca diretamente no futuro de milhões de jovens brasileiros. Quando um conselho atribui para si o direito de negar registro a um egresso de curso reconhecido pelo MEC, não está apenas usurpando uma competência do Estado: está comprometendo o sonho de um estudante, o investimento de sua família e a confiança na educação superior como motor de desenvolvimento.
Assim, defender a estrutura regulatória e avaliativa do Ministério da Educação é defender o Estado de Direito, a Constituição e, principalmente, os estudantes brasileiros. É assegurar que as políticas educacionais sejam construídas com base em critérios técnicos, científicos e pedagógicos, e não em pressões corporativas ou interesses de reserva de mercado.
O Brasil precisa avançar na qualidade da educação superior, e isso exige clareza de papéis. Conselhos profissionais devem se concentrar naquilo que a lei lhes atribui: fiscalizar a prática ética e competente dos profissionais registrados. O MEC, por sua vez, deve ser respeitado como a instância legítima para regular, supervisionar e avaliar os cursos.
Quando cada instituição cumpre sua função, quem ganha é o estudante, a sociedade e o país. Mas quando há invasão de competência, cria-se insegurança, injustiça e entraves ao progresso.
*Diretor-presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), secretário-executivo do Brasil Educação - Fórum Brasileiro da Educação Particular, fundador e controlador do grupo Ser Educacional, e presidente do Instituto Êxito de Empreendedorismo.