
O retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos aumenta a tensão sobre programas de ação afirmativa. A postura e a política adotadas pelo republicano, que critica abertamente iniciativas do tipo, impulsionam um discurso de desvalorização de ações de equidade e inclusão que tem como um dos principais argumentos a alta taxa de turnover (rotatividade) dos selecionados, avalia Rafaela Santana, fundadora da Iarhas — Consultoria de carreiras negras.
"A lógica é a mesma do fim da escravização. Abrem as portas e falam: 'Podem entrar, a empresa está aberta'. Só que nenhum outro processo é mudado", critica. Rafaela, que estuda a política de cotas em um mestrado na Universidade de Brasília (UnB), avalia que é pertinente cogitar que o efeito Trump pode chegar ao Brasil. Mas é otimista quanto aos possíveis desdobramentos. "Pode vir um movimento contracorrente, até porque já tem dinheiro empregado nisso", justifica.
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Donald Trump, como prometido, começou o segundo mandato encerrando programas de ações afirmativas e dizendo que o setor privado deve fazer o mesmo. Como você avalia esse início?
Ele veio afirmando que esse era o lado que iria tomar. Eu acho que a questão aqui é que, quando uma empresa privada toma a decisão de fazer ações afirmativas ou práticas de diversidade e inclusão, isso não vem de uma benevolência, vem de uma pressão social, de um contexto. E, no momento em que tem um governo cuja política é voltada para e por pessoas que estão no topo — são homens brancos, os mais ricos da economia mundial —, isso faz com que, de fato, eles tomem decisões como essa. Os programas de ações afirmativas já não eram uma vontade genuína. E, agora, se pode falar abertamente: "Não os queremos mais". É basicamente o que Cida Bento traz como o pacto narcísico da branquitude. E é um pacto bem declarado: "A gente não quer isso no governo, e o que entendemos como meritocracia são pessoas com a mesma trajetória que a nossa estarem associadas às tomadas de decisão".
Antes da volta do Trump, já se percebia, de certa forma, um movimento nesse sentido. Inclusive, aqui no Brasil…
Tem o momento do boom George Floyd, em 2020, em que ficou impossível, em qualquer esfera social, a não reflexão sobre questões raciais, porque foi algo televisionado, gravado. Com isso, nas organizações, vem a ideia de que, já que é para falar nisso, que vire um mercado, um negócio. Então, o ESG fica ainda mais forte nessa temática racial. Alguns recortes já eram executados há mais tempo, como de gênero e de pessoas com deficiência, e o racial vem com muita força. No Brasil, tem o marco do trainee da Magalu para pessoas negras. A partir dele, há um movimento de maior entrada de pessoas negras no mercado de trabalho privado. Mas também algumas dificuldades acontecem, porque não é só entrar. A entrada é vontade política, mas há outras barreiras. Começa, então, a surgir um movimento de porta-giratória. Há a entrada de pessoas negras, mas também a saída. E, no empresariado brasileiro, começa a minguar a vontade de fazer diversidade e inclusão racial. Então, antes de Trump chegar, já estávamos nesse momento de declínio e diminuição dessa vontade política. O Trump traz essa chancela principalmente para as multinacionais com escritórios nos EUA. Ou seja, o nosso escritório está dizendo que não faz sentido gastar dinheiro para fazer políticas e práticas de diversidade e inclusão com esse nível de turn over.
E os desdobramentos para o Brasil?
A minha pesquisa de mestrado é sobre avaliação de programas de inclusão em empresas privadas. Desde a posse do Trump, isso virou um tópico na minha cabeça. É uma especulação do que pode acontecer, e a minha posição é de que é impossível não pensar em impactos. As nossas principais empresas são multinacionais, e eu acredito que possa, sim, ter impacto no Brasil. Mas tenho percebido um movimento contrário. A C&A acabou de divulgar que, no Brasil, não terá mudança em políticas de diversidade, equidade e inclusão, e eles continuam com metas bem agressivas em relação à equidade de gênero e racial. A gente tem o Mover, que é um movimento de equidade com mais de 50 empresas que estão no Brasil, de vários setores da economia, que continua com as suas ações. Eu analiso que algumas empresas vão, de fato, surfar e dizer "Não vamos mais trabalhar com isso". Mas também pode vir um movimento contracorrente. Até porque já tem dinheiro empregado nisso. Temos também leis — como a de cotas e a que obriga que a cultura afro seja abordada nas escolas — que nos resguardam para que possamos minimamente seguir refletindo sobre isso. E, como em toda a história da humanidade, há os movimentos sociais, que fazem com que as coisas evoluam.
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Há ainda a leitura de que poucos chegam ou ficam em cargos de liderança porque a maioria não tem capacidade para isso…
A lógica é a mesma do fim da escravização. Abrem as portas e falam: "Podem entrar, a empresa está aberta". Só que nenhum outro processo é mudado. Na seleção e recrutamento, já há um perfil que diz que, para participar do programa afirmativo, a pessoa precisa ter inglês completo, tido experiência em uma multinacional, feito uma universidade privada ou alguma universidade fora do país. Essa pessoa também precisa ter carro, porque é importante que ela chegue cedo e participe dos happy hours. Contratada, será avaliada pela inovação. Mas como é que vai ser inovadora se está morrendo de medo de ser demitida porque está em um ambiente que não tem nada a ver com ela? O modelo de avaliação de desempenho é um modelo que não é para pessoas negras. Subjetivamente falando, você entra num lugar que não é seu, e você tem que enfrentar barreiras para que se sinta um bom profissional, consiga colocar novas ideias, avalie as questões de raça sem magoar ninguém. Dentro da minha avaliação de pesquisa, percebo dois impactos. Quando a gente só pensa na entrada e não pensa no dia a dia, isso gera currículos de menos de um ano e o adoecimento da população negra relacionado ao trabalho.
" “Os programas de ações afirmativas já não eram uma vontade genuína. E, agora, se pode falar abertamente: ‘Não os queremos mais"" Rafaela Santana, fundadora da Iarhas — Consultoria de carreiras negras
Você fala em adoecimento psíquico?
Dentro da minha experiência, olhando carreiras negras, tem um momento em que alguns podem chegar a um lugar de totem. Então, se essa pessoa deu conta, vamos todos performar como ela. Mas, para essa pessoa chegar ali, ela teve que, muitas vezes, quebrar o vínculo com o mundo social dela. Ela perde a sua subjetividade. Ela não consegue praticar o racismo, porque racismo é uma relação de poder, mas precisa perpetuar muitas coisas para estar ali. E, às vezes, simplesmente para ter uma condição financeira um pouquinho melhor para a família dela.
E como reagir a isso?
Acho que a estratégia é não fazer nada sem intencionalidade. Então, nós, como pessoas negras e profissionais, precisamos saber ler o contexto, entender se o contexto é racista. E também conseguir o máximo possível ter afetos. Que a gente esteja em coletivo, com pessoas que conseguem nos ver dentro da nossa comunidade, dentro da nossa singularidade. O ambiente de trabalho é um lugar para ser estratégico. É preciso entender quais são os códigos organizacionais, é preciso saber jogar.
Isso incluiu participar dos programas afirmativos? Ainda vale a pena?
Eu acho que é importante a gente ampliar, olhar como algo muito maior. A gente tem muito mais presença de pessoas negras nas universidades, pessoas que conseguem chegar a uma entrevista de emprego e dizer: "Eu sou uma mulher negra e esse é o meu meu lugar". Então, tem uma geração que está vindo que é muito linda de se ver. Ao mesmo tempo em que o racismo é dinâmico, ele é como um algoritmo, vai mudando, a gente também é. Foram quase 400 anos de dominação física, psicológica, emocional, e a gente continua aqui. Uma coisa que a gente sabe é se reinventar e continuar vivo. Diluído no dia a dia, dá uma sensação de que tudo está um caos. Mas acho que, historicamente falando, a gente está, sim, em outro patamar.