INCLUSÃO

TEA no serviço público: desafios para garantir direitos 

Legislação obriga cota mínima para pessoas com deficiência em concursos públicos

Jaqueline Fonseca
postado em 14/09/2025 04:00
Larissa Barreto Ferraz Struck, de 31 anos, é servidora pública e só conseguiu tomar posse na cota PcD após decisão judicial  -  (crédito: Material cedido ao Correio)
Larissa Barreto Ferraz Struck, de 31 anos, é servidora pública e só conseguiu tomar posse na cota PcD após decisão judicial - (crédito: Material cedido ao Correio)

Larissa Barreto Ferraz Struck, tem 31 anos e é servidora pública da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Ela foi aprovada no concurso público através das cotas para Pessoas com Deficiência (PcD), mas ao ser nomeada, no ano passado, precisou ser submetida a uma avaliação do órgão para confirmar a condição, mesmo tendo um laudo médico válido. Ao Correio, ela relatou que a equipe multidisciplinar que a avaliou concordou que era ela autista, mas apontou que não estava dentro dos requisitos de pessoa com deficiência. 

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“Foi algo totalmente ilegal e eu tive que lutar na justiça para obtenção do meu direito de tomar posse. Apenas 1 ano depois, em 2025, após vencer na primeira e segunda instância, foi que consegui tomar posse sob a decisão do TJDFT. Na Secretaria de Saúde fui muito bem acolhida desde o primeiro momento, hoje eu estou trabalhando no Pronto Socorro do HRAN, em um serviço adaptado às minhas restrições e necessidades”, detalhou Larissa.

A servidora pública faz um forte desabafo ao comentar os desafios que enfrenta e reivindica a validade dos direitos já garantidos pela legislação brasileira. “Apesar das diversas leis e campanhas, ainda enfrentamos barreiras e preconceitos, seja numa fila preferencial, ou no trânsito, sala de aula e até no trabalho. As pessoas não acreditam que pessoas adultas podem ser autistas, usam falas como: ‘isso é frescura, isso é para ter benefícios, está usando o laudo como muleta’. Mas só o autista que cresceu sem laudo sabe a dificuldade que é se moldar e se ajustar para que ela seja aceita, para ela conseguir uma formação , um emprego , amigos, relacionamento. As leis já existem, só precisamos que elas sejam cumpridas pelo próprio estado e seus representantes”, reafirma Larissa. 

A Defensoria Pública da União (DPU) atua em casos individuais, quando candidatos com TEA encontram obstáculos no cumprimento da reserva de vagas e também, em nível coletivo, a DPU, por meio do Grupo de Trabalho de Pessoas com Deficiência (GTPID), acompanha a implementação de leis e políticas públicas relacionadas ao tema.  Apesar de a legislação brasileira assegurar direitos às pessoas com TEA, incluindo a Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), a aplicação plena desses direitos em concursos públicos nem sempre acontece. 

Para a defensora pública federal Raquel Brodsky, integrante do grupo de trabalho, pessoas com TEA enfrentam barreiras específicas em concursos públicos, além das dificuldades burocráticas impostas a todas as pessoas com deficiência que concorrem a vagas reservadas, como a exigência de comprar passagens em etapas separadas, deslocamentos presenciais desnecessários e a impossibilidade de concorrer simultaneamente pelas vagas reservadas e ampla concorrência caso não sejam consideradas elegíveis para a cota. Além disso, candidatos autistas lidam ainda com ambientes sensorialmente hostis, ausência de adaptações nas provas e preconceito estrutural.

"É fundamental compreender que o acesso ao serviço público é um direito constitucional de todas as pessoas, incluindo pessoas com TEA. As adaptações não são favores ou benefícios, elas são medidas de equiparação que garantem igualdade de condições. A inclusão não se justifica por qualquer característica especial ou contribuição diferenciada, mas pelo simples fato de que pessoas com deficiência são cidadãs com plenos direitos, e as barreiras existentes devem ser removidas para que possam exercer esses direitos em condições de igualdade", afirma a defensora Raquel Brodsky.

O advogado Max Kolbe, especialista em concurso público e direito das pessoas com deficiência reflete que por ser uma deficiência não visível, o TEA gera obstáculos adicionais. Em muitos certames, a maior dificuldade enfrentada está nos exames biopsicossociais realizados pelas bancas. “O reconhecimento do autismo como deficiência nem sempre é bem compreendido pelos avaliadores, que podem questionar a condição por não enxergarem limitações físicas evidentes. Isso leva, em alguns casos, à exclusão indevida de candidatos das listas de cotas, o que acaba sendo revertido somente por via judicial. Nessas hipóteses, o Judiciário tem reafirmado que o autismo, mesmo não sendo visível, é equiparado a qualquer outra deficiência para fins de inclusão e reserva de vagas”, apontou o jurista. 

Na gestão federal, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) informou ao Correio que desenvolve ações e capacitações para servidores com TEA e para líderes atuarem corretamente com servidores nessa condição. O curso Neurodiversidade com foco em Transtorno do Espectro Autista (TEA) é aberto para toda comunidade (e pode ser acessado neste link).

Além disso, o MGI instituiu o programa LideraGov que tem por objetivo constituir uma rede de servidores qualificados, aptos a atuar como líderes comprometidos com o serviço público e com prontidão para ocupar funções e cargos estratégicos, nesta turma, 32% dos integrantes são pessoas com deficiência e quatro dos servidores são pessoas com autismo.  

No Concurso Nacional Unificado (CNU), o governo federal reservou uma cota de 5% para pessoas com deficiência, além disso, no edital estão definidos os requisitos para comprovação da condição de deficiência. Essas pessoas podem pedir atendimento especializado, conforme estipulado no edital, indicando tecnologias e condições específicas de que necessita para a realização das provas. “A pessoa candidata que solicitar atendimento para Transtorno do Espectro Autista fará jus à correção diferenciada da prova discursiva, caso a documentação comprobatória que motivou a solicitação de atendimento especializado seja aceita. O percentual reservado é uma cota mínima, que pode ser superada, ao se aplicar a regra de que, caso a pessoa candidata tenha nota suficiente, será classificada em ampla concorrência, abrindo a vaga reservada para outra pessoa com deficiência. Além de valorizar  o desempenho do candidato, essa regra possibilita aumentar o número de pessoas com deficiência que ingressam por meio do concurso”, afirmou o MGI ao Correio.

As pessoas que vivem com autismo e buscam colocação no mercado de trabalho esbarram em uma série de dificuldades, mas podem buscar resguardo e garantia aos direitos com base nas leis vigentes. 

 

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