A 72 horas da retirada militar dos Estados Unidos, os moradores de Cabul temem um novo atentado terrorista, considerado “provável” pela Casa Branca. O Pentágono esclareceu que um homem-bomba, não dois extremistas suicidas, se explodiu próximo ao Abbey Gate, o portão leste do Aeroporto Internacional Hamid Karzai, na manhã de quinta-feira. O ataque deixou 170 mortos, incluindo 13 militares norte-americanos, e 155 feridos.
“Os próximos dias desta missão serão os mais perigosos. (…) Nossos comandantes atualizaram o presidente (Joe Biden) e a vice (Kamala Harris) sobre planos para atacarmos o ISIS-K”, declarou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, ao citar o grupo terrorista que reivindicou o massacre.
Ela assegurou que os EUA não reconhecerão rapidamente um governo formado pelo Talibã, a milícia fundamentalista islâmica que controla o Afeganistão há 13 dias. No início da noite, a França anunciou o encerramento de sua participação no resgate de afegãos, depois de remover 3 mil pessoas, entre elas 2,6 mil afegãos. O Pentágono informou que 5 mil pessoas permanecem no aeroporto e prometeu que a operação de evacuação continuará “até o último momento”.
Especialistas consultados por Biden admitem o fracasso da política do democrata para o Afeganistão. Depois de mostrar fragilidade e abatimento durante o discurso à nação, oito horas depois do atentado, o presidente recebeu críticas dos congressistas republicanos, que pediram sua “renúncia” ou o “impeachment”.
“Joe Biden tem sangue nas mãos”, escreveu a republicana nº 3 da Câmara dos Deputados, Elise Stefanik, no Twitter. O senador republicano Josh Hawley pediu a Biden que deixe o poder, ao culpá-lo pelo “fracasso no Afeganistão”. Kevn McCarthy, líder da minoria republicana da Câmara, disse que as ações de Biden “exalam fraqueza e incompetência”.
Aos poucos, os 13 militares norte-americanos mortos — entre eles 10 fuzileiros navais e um médico da Marinha — ganham rosto. Maxton Soviak, o médico de 22 anos que escolheu o serviço militar, publicou a última mensagem no Instagram em 10 de junho. Foi quase profético. Ao lado de uma foto em que aparece com mais dois soldados no Afeganistão, ele escreveu: “É matar ou ser morto; eu, definitivamente, tentarei estar com a primeira opção”.
O marine Rylee McCollum, 20, deixou a esposa grávida de 8 meses. “Ele seria o melhor papai”, lamentou a irmã, Cheyenne, em entrevista à imprensa norte-americana. “Eu culpo meus próprios comandantes militares. (Joe) Biden virou as costas para o meu filho”, declarou Steve Nikoui, pai do fuzileiro naval Kareem Nikoui.
Diretor do Centro para Estudos do Afeganistão da Universidade de Nebraska (EUA), Sher Jan Ahmadzai responsabilizou Biden pelo “tremendo caos” em Cabul e pela falta de perspectivas da população. “As pessoas estão frustradas e amedrontadas com a volta do Talibã e com o terrorismo.
Muitos dos afegãos que trabalharam para as forças norte-americanas e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) estão impedidos de deixar o país. Eles não veem futuro nenhum. Depois de terça-feira, haverá ainda mais frustração”, afirmou ao Correio. No entanto, ele descarta que o ISIS-K seja forte o suficiente para controlar territórios no Afeganistão. “Há múltiplos grupos ligados a essa facção dentro do país. Com certeza, veremos mais ataques do ISIS-K.”
Ahmadzai não descarta um cenário ainda mais catastrófico. “Em todos os países em gerra, nos quais não exista um governo inclusivo, há brecha para a guerra civil. A chance disso é bem alta. Se o Talibã suprimir os direitos humanos e das mulheres, como ocorreu duas décadas atrás, veremos forte possibilidade de uma guerra civil e de interferência de outras nações, as quais apoiarão diferentes atores”, explicou o especialista afegão. Ele vê com desconfiança a promessa feita pelo Talibã de moldar um governo inclusivo. Lembrou que várias alas do grupo defendem um governo soberano.
Pesadelo
Para Paul Miller — ex-diretor para Afeganistão e Paquistão do Conselho de Segurança Nacional entre 2007 e 2009, durante os governos de George W. Bush e de Barack Obama —, o país tomado pelos talibãs é “um Estado falido, um campo de batalha entre diferentes grupos militantes e jihadistas, além de um abrigo para os terroristas”.
“As regiões onde o Talibã tem total controle estão sujeitas a um pesadelo teocrático e totalitário e aos piores abusos de direitos humanos do século 21. Tudo porque os EUA e seus aliados decidiram que era difícil ou caro demais para sustentar uma presença militar muito pequena que permitisse ao Exército afegão manter a linha contra os bárbaros”, disse à reportagem Miller.
Também professor de assuntos internacionais da Universidade Georgetown, Miller acredita que Biden cometeu um erro, ao decidir pela saída do Afeganistão. “Em seguida, o presidente agravou o erro, ao executar a retirada militar de forma incompetente. Os EUA e seus aliados deveriam ficar no país, continuar o combate ao Talibã, fortalecer o Exército afegão e o governo e manter o acesso importantes bases para lançar operações contra o ISIS-K. Em vez disso, Biden apenas entregou o país inteiro aos terroristas”, avaliou.
O estudioso adverte que o ISIS-K usará o território afegão como refúgio para treinar, planejar, recrutar e financiar atentados. “O mundo está menos seguro e mais perigoso por causa da decisão de Biden”, alertou Miller. Michael O’Hanlon — diretor de pesquisa de Política Externa do Brookings Institution (em Washington) — classificou a política de retirada impulsionada por Biden como um fiasco completo.
» Articulação em prol de juízas afegãs
A International Association of Women Judges (IAWJ — “Associação Internacional de Mulheres Juízas”), a Associação Nacional de Magistradas e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) articulam junto ao Itamaraty, ao Ministério da Defesa e ao Comando da Força Aérea Brasileira (FAB) a viabilidade de uma operação estratégica para retirar 270 magistradas do afegãs, que se encontram sujeitas às ameaças do Talibã.
As entidades demandam a disponibilização de aeronaves para o resgate das magistradas e a concessão de asilo político, além da retirada de mulheres, crianças e famílias afegãs. Também solicitam oferta de moradias provisórias para atendê-las. Um manifesto assinado pela desembargadora Shelma Lombardi de Kato, juíza-fundadora da IAWJ; pela Dra. Amina Haddad Campos, juíza-membro da IAWJ; e por Marta Lívia Suplicy, presidente nacional da “Virada Feminina” conclama a comunidade internacional a atuarem no sentido de “resgatar a população submetida ao terror”, oferecer “asilos políticos às autoridades femininas”, acolher as famílias resgatadas e disponibilizar tradutores voluntários.
“Confiamos no compromisso do Brasil com os valores maiores da proteção aos direitos humanos insculpidos na Constituição. Apostamos e acreditamos na atuação acolhedora dos próprios juízes de direito, através das respectivas associações locais, bem como no governo brasileiro”, disse Kato ao Correio.
» Eu acho...
“Eu culpo o presidente Joe Biden. Ele prometeu aos americanos que manteria uma retirada responsável do Afeganistão. O que temos visto é qualquer coisa, menos responsável. A remoção das tropas tem sido irresponsável e resultou em caos. Biden tomou as ações à revelia, apesar do alerta dos conselheiros militares e de segurança. Foi um desastre político. O presidente fez a promessa da retirada durante a campanha política, sem entender as consequências que isso representaria para o Afeganistão.”
Sher Jan Ahmadzai, diretor do Centro para Estudos do Afeganistão da Universidade de Nebraska (EUA)
“A culpa pelo atentado terrorista de quinta-feira no aeroporto reside sobre o ISIS-K, um grupo assassino e tirânico de marginais inimigos da civilização. O governo de Biden pode ser responsabilizado por uma série de erros, apostas ruins e de incompetência administrativa, o que alimentou o caos no Afeganistão. O ISIS-K foi capaz de explorar este caos.”
Paul Miller, professor de assuntos internacionais da Universidade Georgetown e ex-diretor para Afeganistão e Paquistão do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca nos governos George W. Bush e Barack Obama (2007-2009)
“Temos de tentar incentivar o Talibã a moderar o seu governo, usando a oferta do reconhecimento político, o acesso às contas bancárias e o possível envio de ajuda humanitária ao Afeganistão, como uma espécie de barganha. Mas também devemos ameaçar com a força, se houver comportamento ruim ou cooperação ativa com a Al-Qaeda.”
Michael O’Hanlon, diretor de Pesquisa de Política Externa do Brookings Institution (em Washington) e estrategista militar
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