A cada duas horas, uma pessoa perdeu a vida na tentativa de alcançar a Espanha por meio do Mar Mediterrâneo ou do Oceano Atlântico, em 2021. Foram 4.404 migrantes mortos, de acordo com um relatório da organização não governamental espanhola Caminando Fronteras. O número equivale a quase três vezes o total de vítimas do naufrágio do transatlântico Titanic, em 14 de abril de 1912.
O mundo começou a abrir os olhos para a tragédia depois da morte do garoto sírio Alan Kurdi, em 2015, afogado com a mãe e o irmão. Ao comentar as estatísticas da ONG, Abdullah Kurdi (leia
entrevista), pai de Alan e único sobrevivente da família, pediu que países árabes abram as portas aos refugiados, uma forma de evitar o Mediterrâneo. A Caminando Fronteras chegou ao número após entrar em contato direto com familiares dos mortos.
“Apenas 5% dos corpos foram recuperados. Colocamos dois telefones à disposição de migrantes e de suas famílias. Um deles é acionado pelas próprias pessoas em situação de perigo no mar ou por parentes preocupados por não conseguirem contato. Nós informamos às autoridades e monitoramos se houve resgate ou não”, explicou ao Correio María González Rollán, coautora do relatório.
“O outro número está disponível para famílias de pessoas desaparecidas na fronteira. Elas nos perguntam sobre embarcações que partiram meses atrás e as quais registramos como náufragas”, acrescentou.
Ao todo, a Caminando Fronteras registrou 170 naufrágios no ano passado — um a cada dois dias. Desse total, 83 embarcações estariam desaparecidas. Entre os mortos contabilizados pela ONG, estão 628 mulheres e 205 crianças. Em relação a 2020, as mortes aumentaram em 102,95%. “Essa situação evidencia que não se tem feito o bastante para garantir o direito à vida. Há uma falta de coordenação entre os países implicados, e como denunciam sindicatos de Salvamento Marítimo, não há recursos suficientes para buscar e resgatar pessoas em risco”, afirmou María González, por e-mail.
Para ela, é preciso redirecionar a prioridade da perspectiva do controle migratório para a defesa da vida nas rotas mediterrânea e atlântica. Os dados obtidos pela ONG mostram uma deterioração
da segurança no Mar Mediterrâneo e no Atlântico nos últimos três anos. Em 2019, foram contabilizadas 893 vítimas de naufrágios; em 2020, pelo menos 2.170; no último ano, 4.404.
Números conflitantes
Os dados divulgados pela Caminando Fronteras são muito mais alarmantes do que aqueles compilados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), a qual contabilizou 955 mortes ou desaparecimentos na travessia para as Ilhas Canárias, e 324, na rota para a Espanha continental e para as Ilhas Baleares — nesse caso, Marrocos e Argélia costumam ser os pontos de embarque. Apesar disso, a OIM — uma agência das Nações Unidas — confirmou que 2021 foi o ano mais mortífero desde 1997.
Em Madri, mais cedo, María González participou de uma entrevista coletiva na qual referiu-se aos dados como “os números da dor”. Ela advertiu sobre a “feminização” das rotas migratórias para a Espanha, com um número cada vez maior de mulheres se aventurando na travessia. O país é uma das principais portas da migração clandestina na Europa.
Segundo a agência de notícias France-Presse, dados do Ministério do Interior da Espanha apontam que 37.385 migrantes desembarcaram na costa espanhola no ano passado. Helena Maleno Garzón, coordenadora da ONG, criticou a “falta de meios” para levar adiante os salvamentos e a atuação das“organizações criminosas de traficantes”. Ela também repudiou a falta de coordenação entre os governos
da Espanha e do Marrocos e atribuiu o fenômeno às discordâncias diplomáticas entre os dois países. Todo o ano, o Mar Mediterrâneo reforça a má fama de “cemitério de migrantes”.
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ENTREVISTA: ABDULLAH KURDI
Em 2 de setembro de 2015, o sírio Abdullah Kurdi, 45 anos, viu a família ser tragada pelas águas do Mediterrâneo. Ele; a esposa, Rehan; e os filhos Alan Kurdi, 3 anos; e Ghaleb, 4 anos e meio; tentavam fugir para a Europa, depois de abandonarem a casa em Kobane, cidade no norte da Síria devastada pela guerra. Abdullah foi o único sobrevivente. O corpo de Alan foi resgatado em uma praia de Bodrum (Turquia). A imagem da criança sem vida (foto menor) comoveu o mundo. Em entrevista ao Correio, Abdullah falou sobre a onda de naufrágios no Mediterrâneo e cobrou de países medidas para evitar tragédias. Casado novamente, ele teve mais um filho, ao qual deu o nome Alan (foto maior).
Como o senhor vê a notícia de que 4,4 mil pessoas tiveram o mesmo destino de seu filho Alan, em 2021?
Nos três primeiros meses após morte do meu filho, os países da União Europeia saudaram os refugiados e abriram as portas para eles. Depois disso, rejeitaram migrantes forçados a fugir de suas nações devastadas pela guerra. Agora, as pessoas estão morrendo no mar e ninguém se importa com elas. Por que não abrimos as portas para receber famílias fugindo da morte inevitável em seus países e arriscando suas vidas na busca por estabilidade e segurança para suas famílias? Não são pessoas ruins. Apenas foram condenadas pelo destino a fugirem de seus países.
Que apelo o senhor faria a esses países?
Espero que a União Europeia, mas também países árabes ricos abram suas portas para os refugiados. Espero que os árabes façam isso mais do que os europeus, pois são geograficamente próximos de nós, e os riscos de uma viagem até eles são menores. Isso vale especialmente para as nações do Golfo Pérsico. Agradeço aos países da Europa por terem acolhido refugiados e os ajudado com dinheiro. Mas não sei por que o oposto está acontecendo.
Como o senhor lida com a dor e a perda de sua esposa e dos dois filhos, inclusive Alan Kurdi?
Ninguém conhece minha dor mais do que eu. Não quero que ninguém passe pelo que passei. O incidente jamais saiu da minha mente. Eu me casei, Deus me abençoou com outro filho chamado Alan, hoje com um ano e meio. Mas minha família, que se afogou no mar traiçoeiro, não sai da minha cabeça.
De que maneira o mundo pode evitar tragédias como a que atingiu sua família?
Os líderes dos países deveriam respirar fundo, fechar os olhos por um minuto e imaginar que poderiam estar na mesma situação dos refugiados. Então, auxiliar aqueles que buscam asilo em seu território. A melhor solução é que as nações exportadoras de armas para regiões de guerra interrompam o fornecimento e façam prevalecer a paz e a estabilidade. Garanto que todo o refugiado retornará ao país de origem, porque a pátria é algo precioso.