DISCRIMINAÇÃO

Impunidade ainda é regra em Portugal nos casos de racismo e xenofobia

São raríssimos os registros oficiais de punições efetivas de portugueses que agrediram e discriminaram minorias étnicas e imigrantes. Os dados são tão precários que, segundo a Anistia Internacional, não é possível afirmar quantas das denúncias que chegam à Justiça resultam efetivamente em condenações

Vicente Nunes
postado em 02/08/2022 17:59 / atualizado em 02/08/2022 18:00
 (crédito: TV Globo/ reprodução)
(crédito: TV Globo/ reprodução)

Correspondente em LisboaApesar das declarações públicas do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, repudiando casos de racismo e xenofobia no país, são raríssimos os registros oficiais de punições efetivas de portugueses que agrediram e discriminaram minorias étnicas e imigrantes. Os dados são tão precários que, segundo a Anistia Internacional, não é possível afirmar quantas das denúncias que chegam à Justiça resultam efetivamente em condenações. Isso, apesar de uma lei mais rígida contra a discriminação ter entrado em vigor em 2017.

Segundo a advogada Rita Pimentel, da Sociedade de Advogados Francisco Pimentel, Varandas e Associados, o Código Penal Português prevê, em seu artigo 240, a punição com pena de prisão de seis meses a 8 anos, relativamente aos crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência. Mas, levantamento da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), do Parlamento português, aponta que, entre 2005 e 2017, ninguém havia sido punido no país por racismo ou xenofobia.

Nos anos seguintes, com a promulgação da Lei 93, de agosto de 2017, que criou o “Regime Jurídico da Prevenção, da Proibição e do Combate à Discriminação” em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem, passou a haver uma maior conscientização por parte das pessoas sobre os crimes de racismo e xenofobia. Efetivamente, as denúncias aumentaram, contudo, isso ainda não se refletiu em aumento na condenação dos criminosos.

Esse quadro de quase impunidade não desanima o casal de atores Giovanna Ewbank e Bruno Glagliasso, que denunciaram ataques racistas a seus filhos em um restaurante na Costa da Caparica no último sábado (30/7). Eles prometem levar até o final o processo contra uma mulher de 57 anos que chamou dois dos filhos do casal de “negros imundos” e os mandou voltar para o Brasil e para a África. A mulher é uma agressora contumaz a negros e a imigrantes, como se pode ver pelas redes sociais, mas segue impune.

Abusos constantes

Para a advogada, as falas do presidente de Portugal são importantes, porque reforçam a percepção de que o governo não compartilha da visão racista e xenofóbica que ainda impera em parte da sociedade portuguesa. “É precisamente nesta capacidade, de condenar e repudiar publicamente (e legalmente) estes comportamentos que reside a diferença entre as sociedades evoluídas e as que convivem bem com a discriminação e o preconceito”, diz. E reforça: “Não podemos ignorar a mensagem do presidente da República, que pretendeu transmitir, de fato, a existência de comportamentos racistas e xenófobos em alguns setores entre nós, que devem ser veementemente criminalizados e condenados”.

Na opinião de Rita Pimentel, as declarações do presidente português são, precisamente, a forma pública e ao mais alto nível, de Portugal dizer publicamente que comportamentos como o da mulher que agrediu os filhos de Ewbank e Gagliasso são crimes e que não pactuará com quem os perpetrar. “Este é, no meu entender, o eco que deverá ter as declarações do presidente na sociedade civil e além das fronteiras”, destaca. Ela afirma, ainda, que os casos de racismo e xenofobia não são apenas uma realidade portuguesa. “Mas é importante perceber se, efetivamente, os comportamentos racistas e xenófobos estão aumentando ou se a sociedade civil está mais desperta para esta realidade e os denuncia agora de uma forma mais pronta, processo facilitado pelas redes sociais”, complementa.

A advogada assinala que a xenofobia e o racismo não são novidades, mas o aumento do fluxo imigratório pode ter uma relação direta com o número de casos reportados. “As diferenças culturais e étnicas são, muitas vezes, objetos de crítica, de incompreensão e mesmo de não aceitação. Num país em crise, a vinda de imigrantes pode igualmente ser vista como uma ameaça aos postos de trabalho, sobretudo quando essa imigração tem origem em países com condições de trabalho muito precárias e, no exterior, aceita condições muito abaixo até do limiar do legal.

“As instâncias de controle devem estar muito atentas a essas realidades, denunciando sempre todas as potenciais situações de abuso para proteção dos próprios imigrantes e para evitar comportamentos sociais indesejáveis relativamente a cidadãos que, necessariamente, já se sentem mais fragilizados por estarem fora dos seus países de origem”, assina Rita Pimentel. Ela acrescenta que é preciso perceber se, verdadeiramente, os abusos e os ataques contra imigrantes têm merecido a adequada punição, se a integração de classes mais desfavorecidas em razão, por exemplo, da sua nacionalidade, tem tido o devido acolhimento e se o país e as instituições públicas têm dado o exemplo do ponto de vista da integração, de criação de emprego e de acesso à educação e à saúde.

Preconceito nas instituições

É importante ressaltar, também, segundo especialistas, que o racismo e a xenofobia estão dentro dos órgãos públicos de Portugal. Documento de 2019 da Comissão de Assuntos Constitucionais de Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República explicita que, a despeito das recomendações feitas ao Instituto Nacional de Estatísticas ((INE), o equivalente ao IBGE brasileiro, até hoje o país europeu não incluiu nas pesquisas do censo populacional perguntas sobre raças e etnias. Ou seja, Portugal não sabe quantos negros, ciganos, mestiços há em sua população, inviabilizando políticas públicas mais eficientes.

No mesmo documento, a presidente da Casa do Brasil, Cyntia de Paula, reclama da falta de interesse dos partidos políticos portugueses em incluir em seus quadros descendentes de estrangeiros, muitos nascidos em Portugal. Não por acaso, o perfil dos representantes da população no Parlamento é branco. Não há diversidade, o que dificulta a apresentação de projetos que beneficiem a população como um todo, sem discriminação, enfatiza Catarina Reis de Oliveira, coordenadora do Observatório das Migrações.

À época, a então secretária de Estado-Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, chamou a atenção para o racismo, a xenofobia e a violência no seio das forças de segurança, sendo as maiores vítimas negros, ciganos e brasileiros. “Penso que nós não podemos escamotear o problema, e que se discuta o assunto com serenidade. Além da discriminação em si, há a questão do uso da violência, o que é muito mais complexo”, afirma, conforme o documento. Felizmente, alguns policiais têm sido afastados de suas funções por extrapolarem suas funções ao usarem a autoridade até para matar.

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