Europa

Portugal: Partido de extrema-direita deve surpreender na eleição

O conservador Chega ganha espaço e pode ultrapassar legendas tradicionais de esquerda e de direita. Partido deve fazer mais de 40 deputados nas eleições de 10 de março. Especialistas avaliam o fenômeno, impulsionado pelas redes digitais

André Ventura, líder do Chega, participa de debate com Luis Montenegro, da Aliança Democrática, na emissora RTP -  (crédito: Pedro Pina/AFP)
André Ventura, líder do Chega, participa de debate com Luis Montenegro, da Aliança Democrática, na emissora RTP - (crédito: Pedro Pina/AFP)

Lisboa — A menos de um mês das eleições que vão definir o novo governo, em 10 de março, Portugal assiste a um crescimento expressivo da ultradireita, que vem minando partidos tradicionais, com um megaesquema montado nas redes sociais, a exemplo do que se viu no Brasil, nos Estados Unidos e em vários países da Europa. Estudiosos sobre esses movimentos extremistas, como os brasileiros Fernanda Sarkis e Marcus Nogueira, acreditam que legendas como o PSD — social-democrata, ainda apontado pelas pesquisas de intenção de votos como um possível vencedor nas urnas — serão ultrapassadas pelo Chega, que se apoiou em uma rede mundial de desinformação, que não é confrontada à altura pelos oponentes.

Não por acaso, o Chega é o único partido que cresce, sistematicamente, na preferência do eleitorado. Pelos levantamentos mais recentes, a legenda comandada por André Ventura tem entre 19% e 21% do apoio popular, atrás do Partido Socialista (PS) e do PSD, que vêm perdendo posições nas pesquisas e se situam na faixa entre 25% e 28%. Essas legendas tradicionais, que dividiram o poder nos 50 anos de democracia portuguesa, continuam, no entender dos especialistas, na era analógica, enquanto o Chega entrou na fase ultradigital, aproveitando-se de uma linguagem de fácil entendimento para atacar os adversários, que não se deram conta do movimento em curso no país.

"O Chega busca uma linguagem contemporânea às redes sociais e desenvolve um modo de ocupação do espaço digital que é articulado e desenvolvido internacionalmente, tanto na forma de ocupar, quanto nas histórias que são contadas", explica o sociólogo Marcus Nogueira. Um exemplo dessa estratégia, destaca ele, é o discurso sobre a hipótese de fraude eleitoral, que começou a circular no ecossistema do Chega nestas eleições. "Essa história circulou no Brasil, e levou à cassação do ex-presidente Jair Bolsonaro, na Argentina e nos Estados Unidos. Isso não surpreende, pois o ecossistema bolsonarista tem trabalhado fortemente para o crescimento da rede do Chega", acrescenta.

Na avaliação de Fernanda Sarkis, mestre em comunicação política, a estratégia parece estar funcionando com o crescimento do Chega nos últimos anos. "Basta lembrar que, nas eleições de 2019, quando foi criado, o partido elegeu um deputado e, nas legislativas de 2022, fez 12 parlamentares. Agora, a perspectiva é de que ultrapasse os 40 deputados no pleito de 10 de março", destaca. Para ela, o aumento da popularidade e da adesão ao discurso da legenda de ultradireita é evidente, e o impacto disso no cenário político português indica para uma reconfiguração do campo da direita. Fernanda e Nogueira tiveram papel fundamental para ajudar o PT a combater a estrutura digital da extrema-direita nas eleições de 2022, vencidas com uma margem muito apertada por Luiz Inácio Lula da Silva.

Sob nova direção

Apesar de todos os movimentos da ultradireita para desacreditar o sistema político e demonizar a democracia, são muitos os portugueses que se recusam a encarar a realidade como ela é. Por isso, o cientista político Christian Lynch, do movimento Política Viva, que passou recentemente por Lisboa, não descarta a possibilidade de o Chega alcançar o poder em Portugal. "Chance sempre tem. É preciso saber se haverá resiliência ou não do sistema político português", assinala. Na opinião dele, não se pode piscar um segundo em relação aos movimentos da ultradireita populista, pois todas as vezes em que se desacreditou, aconteceuo pior. "Na maior parte da campanha de Bolsonaro à Presidência da República, muita gente desdenhou da capacidade de vitória dele, o que ocorreu. Portanto, é preciso estar sempre atento aos sinais e avaliar o que ocorreu no Brasil", emenda.

Lynch acredita que Portugal ainda tem uma vantagem em relação ao Brasil e à Argentina: o sistema semiparlamentarista, que reduz o poder do chefe de governo, pois o Parlamento pode impor limites, ao contrário do modelo presidencialista, em que o eleito assume o controle total do Executivo. "Mas há exemplos muito próximos de Portugal, em que, mesmo com sistemas parlamentaristas, a extrema-direita chegou ao poder. Isso foi possível na Itália, em países da Europa Oriental e até na Inglaterra, embora de uma forma mais suave", detalha. "Portugal tem algo semelhante acontecendo. Então, toda atenção é pouca", alerta.

Integrante do PSD, que formou a Aliança Democrática (AD) com partidos de centro-direita para as eleições, Miguel Relvas considera um exagero falar em esfacelamento desse espectro político pelo Chega. Ex-ministro de Assuntos Parlamentares, ele afirma que o PSD está enraizado na estrutura política de Portugal, como o MDB no Brasil. Portanto, acrescenta, não há como dizer que o PSD pode ter o mesmo destino do PSDB, que foi engolido pela máquina bolsonarista e nem de longe é o que foi durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso.

Essa posição é contestada por Fernanda Sarkis. "As coisas nunca mudam até mudarem. A percepção das pessoas está se alterando. Enquanto os jovens estão cada vez mais conservadores, os mais velhos estão excessivamente resignados. Tem gente que até hoje nega a popularidade de Bolsonaro. Então, creio que é questão de tempo para as pessoas entenderem que a mobilização política está sob nova direção", enfatiza. Para o sociólogo António Barreto, o Chega é, provavelmente, a maior novidade da política portuguesa na história recente. Em artigo no jornal Público, ele destaca que todos os partidos contribuíram para a ascensão da legenda de extrema-direita.

"Fome, greves, trabalho clandestino, crime, droga, pobreza, violência, miséria nas periferias, filas de espera nos hospitais, baixos salários em todos os setores, nada escapa ao Chega. Corrupção, nepotismo, favoritismo familiar ou partidário são, talvez, as principais molas que fazem o partido reagir com prontidão e espalhafato", escreve Barreto. Tudo orquestrado por uma máquina que alcança com enorme rapidez a população, que, sem questionamento, embarca no discurso, sobretudo, os mais jovens, que se sentem injustiçados pelo sistema.

Apoio dos brasileiros

O avanço da ultradireita em Portugal tem se dado com o apoio de um grande número de brasileiros que vivem, principalmente, no norte do país e são fontes para reforçar a disseminação de notícias falsas. "Acho que esses brasileiros são bolsonaristas, que ficam particularmente felizes, porque estão em um lugar em que, aparentemente, não existem negros, não existe tudo aquilo que eles odeiam no Brasil. Eles estão identificados com uma elite branca dominante que haveria em Portugal", afirma Lynch, que vai além: "Quando comparam a elite portuguesa com a brasileira, eles pensam que estão num lugar melhor, porque estão na Europa, onde não se têm as vicissitudes da população, especialmente a mestiça. Mas são tratados como cidadãos de segunda classe pelo Chega".

Seja como for, esses brasileiros, com todas as suas conexões com o Brasil, vêm puxando a popularidade de figuras usadas pelo Chega para se aproximar dos eleitores, especialmente, dos indecisos, que somam 16% da população que vai às urnas. Um exemplo recente da força desse apoio ocorreu há pouco mais de uma semana, quando o influenciador radical Sérgio Tavares conversou com Bolsonaro em uma live. As visualizações chegaram a 800 mil, quando, normalmente, não passavam de 300 nas lives anteriores. "Para mim, o apoio dos brasileiros ao Chega é uma contradição, já que o partido é contra a imigração", ressalta Lynch, autor do livro O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo.

Diante de todo esse quadro, a grande pergunta que os especialistas se fazem é se os integrantes dos partidos tradicionais acordarão a tempo de evitar uma possível vitória do Chega em 10 de março. Nos debates entre os candidatos, realizados desde a semana passada, nenhum sinal foi emitido nesse sentido. O que se vê é despreparo para lidar com o aparato digital montado pela extrema-direita e muita arrogância para assumir que há um sério perigo no horizonte. "É fundamental mostrar que o conceito de democracia mobilizado pelos populistas reacionários não é compatível com a democracia que conhecemos e prezamos. Os portugueses acham que os riscos são apenas para os ciganos, os imigrantes, os católicos, mas são para todos, basta ser crítico do governo", ensina Lynch.

Luso-brasileiro na disputa

Há 15 anos morando em Portugal, o empresário Marcus Santos, 45 anos, acredita que fará história. Ele é um dos únicos brasileiros candidatos a deputado nas eleições portuguesas marcadas para 10 de março próximo. Representando o estado do Porto, concorrerá pelo Chega, partido da ultradireita que vem ganhando cada vez mais espaço na política local. "Será uma honra para um luso-brasileiro ter a confiança dos portugueses para os representar na casa da democracia", afirma Santos.

Ele diz que representará não apenas os portugueses, mas todos aqueles imigrantes que, como ele, encontraram em Portugal um novo lar. "Um país melhor para os portugueses será um país melhor para todos", acrescenta. Segundo Santos, apesar de ser negro e brasileiro, nunca sofreu qualquer discriminação dentro do Chega, ainda queuma grande ala dentro do partido seja contráriaà presença de estrangeiros em Portugal. "O Chega quer apenas um controle maior na entrada de imigrantes no país. Devem ser permitidos apenas aqueles com habilidades que Portugal precisa, mão de obra qualificada. Não se trata de xenofobia", destaca.

Marcus Santos, 45 anos, é o único brasileiro candidato a deputado nas eleições de Portugal
Marcus Santos, 45 anos, é o único brasileiro candidato a deputado nas eleições de Portugal (foto: Reprodução/Instagram)

Santos, que é lutador de artes marciais e tem uma rede de academias em Portugal, ocupa, atualmente, a vice-presidência do Chega no Porto. Para ele, mesmo os imigrantes que escolheram Portugal para morar e trabalhar não querem que as portas estejam escancaradas "para qualquer um". "Da forma como está, a imigração está trazendo a violência. Já houve piora nos sistemas públicos de saúde e de educação, que estão sobrecarregados", frisa.

Ele ressalta, ainda, que o trânsito livre para imigrantes facilita o tráfico de seres humanos e leva muitos deles a serem explorados quase que como escravos. "Além disso, não há casas suficientes no país para quem vem de fora. Assim, muita gente acaba se amontoando em um único imóvel. Por isso, o Chega defende o controle da imigração", emenda.

Segundo o brasileiro, sua bandeira principal na campanha será a proteção à família. "O Chega é um partido de patriotas, de nacionalistas, com prioridade para os portugueses. Esse é o motivo de colocarmos a família à frente de tudo", diz. Para ele, é justamente o discurso conservador do partido que tem atraído cada vez mais apoiadores, sobretudo, os mais jovens, que "estão desesperançados com tanta corrupção".

Entre os brasileiros que moram em Portugal, a maior parcela dos votantes no Chega é de evangélicos. "São pessoas que não buscam benefícios, querem apenas a família e acreditam que homem é homem e mulher é mulher. Com essa posição, o Chega tem atraído até muçulmanos", complementa Santos.

Pelos cálculos do candidato, o Chega fará entre 40 e 50 deputados. "As pessoas estão fartas do PS (Partido Socialista, que governou Portugal nos últimos oito anos). Há dificuldades por todos os lados, até o policiais estão fazendo protestos", assinala. Se essas projeções se confirmarem, afirma o brasileiro, o partido de ultradireita será peça fundamental para que a legenda que obtiver o maior número de votos consiga formar maioria para governar. Nesse caso, o Chega poderia fechar uma aliança com o Partido Social Democrata (PSD), que indicou não ter interesse em se aliar à direita populista. "Se entrarmos num governo, será para ter participação efetiva, com direito a vários ministérios", avisa. (VN)

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

Vicente Nunes Correspondente
postado em 14/02/2024 06:00
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação