NAZISMO

"A história está se apagando", lamenta filha de sobrevivente de Auschwitz

Janette Patricia Art Machlup, 67 anos, conta ao Correio como a mãe, Gustava, e o pai, Henry, resistiram aos horrores do Holocausto. A fonoaudióloga pede ao mundo que não se esqueça das barbáries de Adolf Hitler

Na foto, Janette (de rosa), com a mãe, Gustava, e familiares -  (crédito: Acervo Pessoal)
Na foto, Janette (de rosa), com a mãe, Gustava, e familiares - (crédito: Acervo Pessoal)

A fonoaudióloga Janette Patricia Art Machlup, 67 anos, aprendeu com os pais uma lição valiosa para toda a vida: a necessidade de resistir. Foi graças à força de vontade, à superação e à resiliência que Henry Art e a esposa, Gustava Art, sobreviveram a todos os horrores do Holocausto e formaram uma família no Brasil.

Gustava foi enviada ao campo de extermínio de Auschwitz; Henry, para os campos de Mathhausen e Bergen Belsen. A mãe de Janette faleceu em 2024, aos 99 anos, apenas duas semanas antes de completar o centenário. O pai morreu em 1997, aos 77.

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Em entrevista ao Correio, de São Paulo, onde vive com a família, Janette contou sobre a luta dos pais pela sobrevivência, os traumas carregados desde o fim da Segunda Guerra Mundial e as perdas nos campos de extermínio.

Ela não escondeu o medo pelo fato de parte do ódio, represado durante oito décadas, ter vindo à tona com o massacre de 7 de outubro de 2023, quando o grupo terrorista Hamas invadiu o sul de Israel e matou mais de mil judeus. "Como os sobreviventes (do Holocausto) estão indo embora, a história está se apagando. A gente não pode deixar essa história se apagar", desabafou.

Como seus pais sobreviveram ao Holocausto?

Eles tinham uma força de vontade incrível, que trouxeram para a vida depois, aqui. Eles nos ensinaram que temos que ser positivos e acreditar que vamos conseguir. A minha mãe tinha 14 anos, quando foi tirada de casa.

Ela morava em Cracóvia (Polônia) e foi morar nos arredores da cidade. Depois, para Plaszow. Lá, ela teve que fazer vários trabalhos, como varrer rua, costura. Enfim, foi bastante explorada. Depois, foi mandada para Auschwitz.

Em Auschwitz, ela tinha força de vontade. Ela nos contou que dividia o beliche com uma amiga de infância. Uma dava força para a outra. Quando fomos para Auschwitz — eu, meu irmão e ela —, minha mãe disse que, com muita força de vontade, conseguiu superar o fato de morar naqueles barracões de Birkenau. É resiliência, mesmo. Ela sempre foi assim. Meu pai era mais velho, tinha 20 anos.

Quando os alemães chegaram, morava em Lviv (atual Ucrânia). Os pais dele foram assassinados na porta de casa e ele conseguiu fugir pela janela do banheiro, com a ajuda de um amigo. Ele nunca falou muito, contou-me algumas coisas, que se escondeu em vagões de trens, mas acabou no campo de Mathhausen. Ele subia as escadas com pedras e descia, e dizia que iria conseguir. E ele conseguiu.

Esse grande amigo, que fugiu com ele, estava sendo provocado pelos alemães e pediu ajuda para o meu pai. Eles trocaram de camisa e sobreviveram. Quando o soldado alemão foi provocar, de novo, o amigo, o meu pai, que sempre foi muito enérgico, com muita força, falou: "O que você quer de mim?". O alemão disse: "Está bem, passa". Eles se encontraram, depois, em um campo de refugiados na Áustria.

 

  • Gustava foi enviada ao campo de extermínio de Auschwitz
    Gustava foi enviada ao campo de extermínio de Auschwitz Acervo Pessoal
  • Gustava foi enviada ao campo de extermínio de Auschwitz
    Gustava foi enviada ao campo de extermínio de Auschwitz Acervo Pessoal
  • Família de Gustava Art. Ela sobreviveu ao Holocausto
    Família de Gustava Art. Ela sobreviveu ao Holocausto Acervo Pessoal

Que lições o mundo deve extrair do que ocorreu 80 anos atrás?

Se você tivesse feito essa pergunta antes de 7 de outubro de 2023, eu diria que o mundo deveria aprender a ser mais tolerante e menos preconceituoso. As pessoas são todas iguais. Depois de 7 de outubro, acho que, de repente, aqueles que tinham guardado para si toda aquela intolerância com os judeus, ou insatisfação, trouxeram tudo isso à tona. O antissemitismo está muito efervescente agora.

A gente tem que lutar contra isso. No fundo, a população de judeus é pequena em relação à do mundo. Então, por que tanta discriminação? Por que tanto ódio? Se a gente fez tanto pela ciência, pela cultura... Se você parar para pensar, mentes brilhantes, não só de judeus, mas de outras pessoas, contribuíram muito para o desenvolvimento. Acho que as pessoas se esqueceram do que se passou e a intolerância voltou à tona.

A intolerância tem que ser combatida. As pessoas que negam o Holocausto não sabem o que eles passaram. Eles (sobreviventes) estão indo embora. Minha mãe faleceu há um ano. Não se pode deixar apagar essa história, tão triste e cruel.

Adolf Hitler tentou eliminar os judeus. Minha mãe disse uma frase, na porta de Birkenau: "Ele se foi, mas eu consegui". A gente não pode deixar essa história se apagar. É muito importante sempre lembrar para não esquecer.

De que modo a senhora vê a ascensão do neonazismo?

Na década de 1930, com a ascensão de Hitler, o mundo não enxergou, de imediato, o que estava acontecendo. Quando os governantes perceberam, houve uma ajuda para a Europa, dos aliados. Teve a libertação dos judeus dos campos de concentração.

Os americanos decidiram fotografar tudo, por acharem que o mundo se esqueceria do que aconteceu naqueles locais. Então, era algo inimaginável o que estava se passando. Acredito que, por muito tempo, as pessoas tinham vergonha de admitir o sentimento deles.

Eu morei por um tempo na Alemanha. Meu marido precisou trabalhar lá. Quando fui para a Alemanha, meu pai me fez prometer-lhe que não diria a ninguém que sou judia. Tentei cumprir a promessa. Até que um dia, não aguentei. Na minha aula de alemão, falávamos sobre vida, paz, passado e futuro. Coloquei ao professor que eu era judia e que meus pais eram sobreviventes, tinham fugido da Europa e ido para o Brasil.

De repente, o professor se transformou e falou: "Eu não sou responsável pelo que meus antecedentes fizeram; então, vamos encerrar a conversa aqui". O que eu sentia, naquele momento, 50 anos depois, foi que ele tinha vergonha de falar.

Com certeza, ele tinha familiares ou amigos nazistas. Então, alguma coisa aconteceu. No passado, as pessoas tinham vergonha de falar. A comunidade judaica estava muito forte, Israel progredia... Quem tinha o sentimento, tanto neonazista quanto fascista, estava meio que adormecido ou acanhado. Depois de 7 de outubro de 2023, eles sentiram que podiam pôr tudo isso para fora. Toda essa raiva, essa intolerância.

O que o Hamas fez foi dar o primeiro empurrão para que essas pessoas se colocassem e trouxessem à tona um ódio insano, desnecessário. Acho que os palestinos têm que ter uma vida digna, um espaço e um lugar para criar seus filhos. Mas eu não posso acusar ninguém por eles não terem esse espaço. A gente tem que ajudá-los. Israel e o mundo ajudam. Mas não é culpa de Israel que o Hamas sinta ódio dos judeus. As pessoas confundem o que está acontecendo lá com sua raiva interna.

Tudo isso que acontece agora é algo que foi represado por 80 anos e estão colocando para fora, com desinformação, sem saber o porquê estão assim, o porquê do ódio. O maior mal da atualidade é a desinformação. As pessoas estão acreditando em mentiras e fazendo delas verdades.

A senhora Gustava chegou a contar algo para a senhora sobre a vida em Auschwitz?

Minha mãe passou praticamente a adolescência dela inteira entre um campo e outro. Ela trazia consigo muitos traumas. Tinha momentos em que ela era muito nervosa e falava para mim: "Olha, na sua idade eu já fazia isso!" Com 14, 15 ou 16 anos. A vida dela em Auschwitz, que não foram muitos anos, foi cruel. Ela passou frio, fome... Viu o oficial atirando do terraço nas pessoas. Então, ela não gostava de tiros. Era uma vida de medo, de trabalhos que ela não gostava.

Minha mãe perdeu o namoradinho dela. Então, teve o primeiro sofrimento. Ela chegou a Birkenau e, assim que desceram do trem, a melhor amiga foi para um lado e minha mãe, para outro. Josef Mengele falou assim: 'Você vem para cá' (e minha mãe foi tatuada) e 'você vem para cá, porque você tem pintinhas' (e a amiga foi para a câmara de gás). Minha mãe contava que foi separada dos pais e teve que se virar sozinha. Minha mãe saiu de Auscwhitz quando os russos chegaram, com os fogos de artifício.

Ela gostava de fogos de artifício, porque foram o sinal da liberdade. Mandaram que ela andasse na neve e lhe deram roupas. Ela teve que andar, naquele janeiro frio de 1945, e se escondeu em um celeiro, no meio do feno. Havia uma luta pela comida. Depois de vir para o Brasil, ela montou uma família muito linda. Eu e meu irmão nos casamos, ela teve netos e quatro bisnetos lindos. Os traumas ficaram.

Minha mãe teve que doar sangue à força, desmaiou de fraqueza; foi colocada num bunker para fazer dinheiro falso, mas chegaram os russos e sobreviveu. Tinha fobias, não gostava de elevadores nem portas fechadas.

Meus pais foram exemplos para nós. Não eram milionários, mas nos deram tudo o que eles pediram: amor, carinho, dedicação... Meu pai me dizia: "O que você tem dentro da sua cabeça ninguém vai te tirar; educação ninguém te tira".

Rodrigo Craveiro
postado em 27/01/2025 14:45 / atualizado em 27/01/2025 15:10
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