
Horas antes de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciar que Irã e Israel acordaram um cessar-fogo total, a Força Aérea israelense lançou bombardeios sem precedentes contra símbolos do regime teocrático islâmico. As explosões sacudiram diversos pontos de Teerã e mataram centenas de integrantes da Guarda Revolucionária Iraniana abrigados no quartel-general da instituição, no bairro de Thar-Allah. Também foram atingidos a sede da Basij — o grupo paramilitar responsável pela repressão —; o relógio "Destruição de Israel"; e a Prisão de Evin, um dos principais centros de tortura do Irã.
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As Forças de Defesa de Israel (IDF) informaram que o QG da Guarda Revolucionária reunia diversos corpos e comandos responsáveis pela defesa da pátria e pela manutenção da estabilidade do regime. "A milícia Basij serve como uma das bases de poder da Guarda e se responsabiliza por aplicar a sharia (lei islâmica) e denunciar civis que o violam às autoridades", acrescentou a nota das IDF. Também foram atingidas instalações da unidade Alborz, força de segurança incumbida de proteger cidades da província de Teerã e a sobrevivência do regime.
Segundo o jornal The Times of Israel, os caças israelenses despejaram 100 bombas contra os alvos em um período de duas horas. Vídeos divulgados pela internet mostram uma explosão nos portões da Prisão de Evin. "No mais recente ataque do regime sionista a Teerã, projéteis infelizmente atingiram a penitenciária, danificando partes da instalação", informou o site Mizan Online, ligado ao Judiciário iraniano.
De acordo com o iraniano Saeid Golkar, especialista em Oriente Médio pela Universidade do Tennessee em Chattanooga (Estados Unidos), os ataques a Teerã tiveram o propósito de enfraquecer as extensas forças de segurança da República Islâmica. "Elas são um pilar-chave da estabilidade do regime. A ideia é que, se houver grandes manifestações novamente, como as que ocorreram em 2022, o regime não possa reprimi-las. Isso criará medo entre a Guarda Revolucionária Iraniana e a Basij, caso os ataques prossigam nos próximos dias", disse à reportagem.
O especialista assegura que os primeiros sinais de uma nova repressão são visíveis no Irã, com cidadãos detidos sob a acusação de "colaborarem com Israel" ou simplesmente por expressarem simpatia pelos israelenses nas plataformas de mídias sociais. "Enquanto isso, as autoridades impuseram um apagão quase total de informações, reduzindo a velocidade ou bloqueando o acesso à internet, interrompendo as redes telefônicas e bloqueando os sinais de televisão por satélite", afirmou Golkar. "A história sugere que, uma vez terminadas as principais hostilidades com Israel, Teerã intensificará as táticas repressivas. Se isso acontecer, a sociedade iraniana provavelmente pagará um alto preço humano e político."
Preocupação
Em entrevista ao Correio, a escritora iraniana Marina Nemat, 60 anos, ex-prisioneira no corredor da morte em Evin, falou sobre o misto de sentimentos ao tomar conhecimento do bombardeio à penitenciária. "Fui detida na minha casa, em Teerã, em janeiro de 1982. Eu tinha 16 anos e havia participado de protestos contra o regime iraniano e levantado minha voz contra a supressão dos direitos das mulheres e a liberdade de expressão. Fiquei dois anos, dois meses e 12 dias em Evin, onde fui torturada emocional e fisicamente", contou. "Por muitas noites, eu e minhas colegas de cela escutávamos os disparos dos pelotões de fuzilamento acabando com as vidas de outros presos, muitos deles, adolescentes."
Nemat se diz preocupada com o destino dos prisioneiros. "Espero que nenhum deles tenha se ferido durante o ataque. Ao mesmo tempo, fiquei feliz com o fato de que uma prisão que foi local de tortura, assassinatos em massa e várias outras formas de maldade e injustiça tenha sido danificada", admitiu.
A jornalista Hengameh Shahidi, 50, ficou na solitária, em Evin, por dois anos e meio, entre julho de 2018 e fevereiro de 2021. No entanto, esteve presa ali em quatro ocasiões: 2009, 2010, 2017 e 2021. Tudo porque conduziu uma entrevista com a emissora BBC em farsi e expôs corrupção no Judiciário iraniano. "O bombardeio a Evin é uma vergonha histórica para o regime sionista. Atacar uma prisão é uma violação das leis de guerra e do cerne da decência humana. Assim como os hospitais são santuários da humanidade, as prisões devem permanecer fora dos limites de uma agressão tão brutal", opinou ao Correio.
"Durante o período em que estive na solitária, houve incontáveis noites em que desejei o colapso daquelas paredes de Evin. Mas, quando vem pelas mãos de nosso inimigo, isso evoca uma contradição profunda e dolorosa. Hoje, os prisioneiros estão divididos entre a raiva e o espanto, entre a fugaz sensação de fuga e a amarga pontada da humilhação", acrescentou Shahidi.
EU ESTIVE EM EVIN...
"Não sei se esse é o fim do regime assassino da República Islâmica. Desde 1980, tenho desejado o colapso do regime e feito tudo o que posso para expor suas atrocidades. Espero que estes sejam os últimos dias do regime. Mas, não tenho bola de cristal. A mudança no Irã tem que ser feita pelo povo iraniano. Temos que manter em mente que o colapso do regime necessariamente não significa um futuro brilhante e feliz para o povo do Irã. Muitos perigos espreitam nas sombras. Existem grupos políticos perigosos, que podem tomar o poder. Eles não transformarão o Irã em uma democracia. Além disso, o país abriga muitos grupos étnicos que desejam a independência há um tempo e irão se separar, caso tenham oportunidade. Preocupo-me como possível derramamento de sangue e uma guerra civil."
Marina Nemat, 60 anos, ex-prisioneira no corredor da morte da Prisão de Evin
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"O desejo de mudança de regime existe em menos de um terço dos iranianos e, mesmo dentro dessa minoria, apenas uma fração está realmente disposta a tomar medidas diretas contra o governo. A agitação que estamos testemunhando (coincidindo com ataques de mísseis a Teerã e outras cidades) faz parte de um plano mais amplo orquestrado pelos EUA e pelo regime israelense para fabricar o caos e abrir caminho para a interferência estrangeira. Mas o povo iraniano não se deixa enganar facilmente. Eles criticam, levantam a voz, mas não permitem que atores estrangeiros ditem seu destino. Apesar da profunda desigualdade socioeconômica e da frustração, os iranianos estão cientes de que qualquer revolução imposta por estrangeiros traria o mesmo destino trágico que vimos no Iraque, Afeganistão, Líbia, Egito ou Tunísia, nações mergulhadas em guerra civil, desintegração e ocupação sem fim."
Hengameh Shahidi, 50 anos, jornalista iraniana, presa em Evin por quatro vezes
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