Religião

Escolha do próximo Dalai Lama ultrapassa a questão espiritual

No 90º aniversário líder religioso, anúncio sobre sucessão reacende o debate político em torno do papel do budismo tibetano, sobretudo para a China, que reivindica o Tibete. Pequim o considera um separatista e exige intervenção na decisão

Dalai Lama comemora os seus 90 anos, em Dharamsala, ao lado de seguidores, como o ator Richard Gere (de azul) -  (crédito: Niharika Kulkarni/AFP)
Dalai Lama comemora os seus 90 anos, em Dharamsala, ao lado de seguidores, como o ator Richard Gere (de azul) - (crédito: Niharika Kulkarni/AFP)

Ao completar 90 anos, o Dalai Lama — a suposta reencarnação de Buda — anunciou que ele e 100 monges mais elevados da congregação religiosa em Dharamshala preparam-se para a escolha do sucessor e reacendeu o debate político em torno do papel do budismo tibetano, sobretudo para a China, que reivindica o Tibete. O governo de Xi Jinping divulgou que cabe ao Partido Comunista Chinês a definição de quem será o próximo líder religioso. Porém, o próprio Dalai Lama negou e declarou que a fundação Gaden Phodrang Trust tem autoridade para reconhecer o escolhido. Neste domingo (6/7), ele irritou a China, ao afirmar que o sucessor "nascerá em um país livre". Ao Correio, Jigme Tsering, representante do Dalai Lama para a América Latina, disse que o líder está bem de saúde, mas antecipou o processo sucessório.

"Sua Santidade desfruta de saúde relativamente boa para alguém com 90 anos. Ele continua ativo em oferecer ensinamentos e em se reunir com figuras globais, embora com uma agenda mais limitada. A decisão de iniciar discussões sobre a sucessão não se deve a nenhuma doença secreta", afirmou Tsering. "Trata-se de uma medida estratégica e responsável para proteger a autenticidade do processo de reencarnação de potenciais interferências políticas. Ao abordar o assunto durante sua vida, ele garante que o processo permaneça enraizado na integridade espiritual e seja salvaguardado em benefício do povo tibetano e do mundo budista em geral."

Refugiado na Índia desde 1959, o Dalai Lama, monges e cerca de 800 seguidores obtiveram a chancela do ministro de Assuntos das Minorias indiano, Kiren Rijiju. Segundo ele, a encarnação do próximo líder deve seguir os desejos do atual. Ele acrescentou que a fundação Phodrang Trust tem autoridade para identificar o sucessor. Em resposta, a China pediu à Índia que tenha cautela em suas palavras e ações para evitar qualquer impacto adverso na melhoria das relações bilaterais, segundo a emissora NDTV. Para tentar amenizar um eventual conflito, o Ministério das Relações Exteriores indiano contradisse Rijiju, em um comunicado. "O governo sempre defendeu a liberdade religiosa para todos na Índia e continuará a fazê-lo", disse o Ministério das Relações Exteriores.

Para os chineses, o Dalai Lama e seus seguidores são considerados separatistas e rebeldes pela defesa da autonomia do Tibete. A China comunista anexou a região em 1951. Na semana passada, o líder espiritual disse que, nos últimos anos, recebeu inúmeros telefonemas de representantes da diáspora tibetana, de budistas da região do Himalaia, da Mongólia e de partes da Rússia e da China, "pedindo a continuação da instituição do Dalai Lama".

Símbolo da não violência, da compaixão e da luta pela identidade cultural tibetana sob o domínio chinês, Tenzin Gyatzo — o atual Dalai Lama — foi identificado como o sucessor aos dois anos. Desde 1939, é reconhecido como Sua Santidade. Em 1989, ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz "por defender soluções pacíficas baseadas na tolerância e no respeito mútuo, a fim de preservar a herança histórica e cultural de seu povo".

Sinais dos céus

A sucessão do Dalai Lama somente ocorre depois de sua morte — o próximo líder budista é considerado uma reencarnação. No Brasil, há cerca de 245 mil budistas de distintas linhas, sendo três as principais: theravada, mahayana e vajrayana. Considerado o 14º líder, ele surpreendeu, ao anunciar que começaram os preparativos para sucedê-lo. No livro Voz para os Sem Voz, lançado em 2025, o religioso avisou que o sucessor nasceria fora da China.

Disfarçados, monges e lamas saem atrás de pistas, em busca do sucessor. Eles observam sinais físicos particulares no candidato, como orelhas grandes ou marcas. Também o confrontam com objetos do Dalai Lama na vida anterior, como terços.

O governo chinês afirma ter o direito de endossar o próximo Dalai Lama com base na prática histórica da Dinastia Qing. Em 1793, a Dinastia Qing estabeleceu um sistema de uso de uma urna de ouro para lançar a sorte e validar reencarnações. Posteriormente, Pequim argumentou que essa cerimônia legitima sua autoridade sobre o processo de reencarnação. A China também promulgou uma legislação que exige que qualquer lama reencarnado seja sancionado pelo Partido Comunista.

TRÊS PERGUNTAS PARA...

JIGME TSERING, representante do Dalai Lama para a América Latina

O Dalai Lama anunciou o início de sua sucessão. É diferente do processo tradicional?
Os princípios fundamentais permanecem alinhados com o processo tradicional do budismo tibetano, no qual a reencarnação de um Dalai Lama é tipicamente identificada, após sua passagem, por meio de visões, sinais e adivinhações de altos lamas e instituições espirituais. No entanto, Sua Santidade enfatizou a necessidade de um processo mais transparente e protegido no contexto moderno. Ele reafirmou tanto a continuidade de sua reencarnação quanto sua responsabilidade em guiar o reconhecimento. O próximo Dalai Lama será encontrado por meio de um processo legítimo do budismo tibetano — livre de interferência política, especialmente da China, e em alinhamento com a vontade do povo tibetano e as tradições budistas. Os membros do Gaden Phodrang Trust devem consultar os diversos líderes das tradições budistas tibetanas e os confiáveis Protetores do Dharma, juramentados, que estão inseparavelmente ligados à linhagem dos Dalai Lamas. Devem, portanto, realizar os procedimentos de busca e reconhecimento de acordo com a tradição passada.

Jigme Tsering representante do Dalai Lama para a America Latina
Jigme Tsering representante do Dalai Lama para a America Latina (foto: Arquivo Pessoal )

A China declarou a intenção de controlar e aprovar todas as reencarnações de lamas tibetanos sob uma regulamentação de 2007 que exige autorização estatal. Mas essa alegação não é reconhecida pela liderança religiosa tibetana, como resolver a controvérsia? 
Sua Santidade e a Administração Central Tibetana (ACT) deixaram inequivocamente claro que qualquer Dalai Lama nomeado pelo governo chinês seria uma criação política, não um sucessor espiritual legítimo. Tal ação seria rejeitada pelos budistas tibetanos e pela comunidade global. Ele enfatizou que "reitero que o Gaden Phodrang Trust tem autoridade exclusiva para reconhecer a futura reencarnação; ninguém mais tem autoridade para interferir neste assunto".

Como os seguidores brasileiros serão informados sobre a transição?
Os seguidores brasileiros, assim como os do mundo todo, serão informados por meio das declarações oficiais do Gabinete de Sua Santidade o Dalai Lama – http://www.dalailama.com
e da Administração Central Tibetana – https://tibet.net/. Esses canais garantirão que os seguidores recebam informações precisas e precisas, ajudando a evitar confusões ou informações equivocadas — particularmente de narrativas apoiadas pela China. (RG)

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postado em 07/07/2025 05:50
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