
Ele se autodenomina "o ditador mais legal do mundo" e se gaba por combater a criminalidade com mão de ferro. Para opositores, o presidente Nayib Bukele — um millennial de 44 anos que ascendeu ao poder em El Salvador há seis anos — não passa de um ditador com planos de se perpetuar no comando do país da América Central e do destino de 6,6 milhões de pessoas. Na quinta-feira passada (31/7), Bukele galgou mais um passo na consolidação de um governo autocrático, depois que a Assembleia Legislativa (o parlamento unicameral) aprovou uma profunda reforma constitucional que amplia o mandato presidencial de cinco para seis anos e derruba os limites de reeleição. Por 57 votos a três, os deputados também colocaram fim ao segundo turno das eleições.
O que impressionou foi a celeridade de todo o processo, quase que sumário. Também chama a atenção como Bukele conseguiu concentrar tanto poder em tão pouco espaço de tempo. O analista político Ricardo Navarro vê o atual presidente como uma expressão da rejeição ao bipartidarismo da direita e da esquerda, incapazes de resolver os problemas da pobreza e das gangues, como a "Mara Salvatrucha". "As gangues extorquiam dinheiro de todos. As pessoas estavam cansadas, decepcionadas com os governos anteriores. Eram os mesmos de sempre, o que permitiu que ele vencesse em 2019 (52% dos votos). Havia uma exaustão", disse à agência France-Presse.
Benjamin Cuellar, membro da ONG Victimas Demandantes (Vidas) e do Conselho Diretivo do Centro pela Justiça e Direito Internacional (Cejil), explicou ao Correio que a escalada autoritária começou durante a pandemia. Em 2020, Bukele determinou a invasão militar da Assembleia Legislativa. "As forças ameaçaram os deputados para que aprovassem um empréstimo para a política de segurança do governo. Ainda durante a covid-19, foram criados centros de confinamento para manter as pessoas trancadas. Em 1º de maio de 2021, depois de um pacto com a "Mara Salvatrucha", Bukele passou a controlar a Sala do Tribunal Constitucional", disse. Ao citar mudanças nas normas eleitorais e o controle institucional, Cuellar assegurou que El Salvador assistea uma "escalada de uma figura autocrata e ditatorial".
O Correio entrevistou os três únicos parlamentares da oposição salvadorenha. Deputada nacional da Assembleia Legislativa pela Alianza Republicana Nacionalista, Marcela Villatoro classificou a decisão do parlamento como "aberrante". "Eles conseguiram matar a democracia em nosso país. A nossa Constituição proíbe, em sete artigos, a reeleição. Inclusive, estipula que aquela pessoa que promover a reeleição será punida com a perda dos direitos de cidadão", afirmou, por meio do WhatsApp. Villatoro credita a reeleição ilimitada à concentração de poder. "Bukele tem 57 dos 60 deputados; além disso, o governo destituiu o procurador-geral da República e a Sala do Tribunal Constitucional para colocar aliados do presidente."
Villatoro lembrou que os parlamentares alinhados a Bukele reformaram a Constituição para permitir que uma única Assembleia mude a Carta Magna. "Antes, estava escrito que eram necessárias uma Assembleia para aprovar a mudança e outra para ratificá-la. Por fim, os governistas também sequestraram o Tribunal Supremo Eleitoral, pois não existe mais um ente que possa fiscalizar e verificar que as eleições sejam reais e transparentes, e os juízes são pessoas de confiança do partido de Bukele", acrescentou.
"Ilegítima"
Por sua vez, Claudia Ortiz — deputada nacional pelo partido liberalista e anticomunista Vamos (oposição) — qualificou a reforma constitucional aprovada na quinta-feira de "totalmente ilegítima". "A Assembleia Legislativa incumbiu-se de uma faculdade que não lhe corresponde: mudar uma norma pétrea da Constituição. Basicamente, usurpam um poder soberano, que corresponde unicamente ao povo, de estabelecer a maneira pela qual se pode eleger um governante e retirá-lo do poder", admitiu, por telefone.
Ortiz contou que, desde sua eleição para o parlamento, em 2021, tem denunciado as irregularidades, a corrupção, as perseguições políticas e a ausência de transparência. "Nós, salvadorenhos, estamos há mais de 40 meses com as garantias constitucionais suspensas. O regime de exceção tem semeado medo entre a população. As últimas pesquisas mostram que 60% dos salvadorenhos têm o temor de emitir opiniões políticas." A reportagem tentou entrevistar um cientista político de San Salvador, mas, ao saber do tema, disse que não poderia se pronunciar.
Francisco Lira, deputado nacional do Arena, partido da direita conservadora, não esconde a indignação. "Como parlamentar da oposição, não posso guardar silêncio ante o que estamos vivendo. Em poucos anos, Bukele conseguiu concentrar um poder sem precedentes na história recente de El Salvador, enfraquecendo as instituições e os pilares do Estado de Direito", denunciou, também pelo WhatsApp. Segundo ele, desde 2021, quando o seu partido Nuevas Ideas obteve controle absoluto da Assembleia Legislativo, várias decisões tomadas enfraqueceram a democracia. "Os juízes da Sala Constitucional foram ilegalmente destituídos e impôs-se uma interpretação expressa para autorizar a reeleição presidencial imediata. O governo está em estado de emergência há mais de três anos, e reformas constitucionais acabaram aprovadas sem consulta ou debate público."
Para Villatoro, Bukele lançou a reeleição indefinida como estratégia de sobrevivência. "Antes de perder popularidade, frente aos problemas enfrentados por El Salvador, como a corrupção, a impunidade, o uso de regime de exceção para calar opositores, entre outras coisas, Bukele decidiu ampliar o mandato e derrubar os limites à reeleição", observou. "Os deputados oficialistas fizeram isso por meio de um mecanismo chamado de 'dispensa de trâmite'. Foi feito na calada da noite, longe dos olhos da população, um dia antes das férias, para que ninguém se desse conta disso."
Por sua vez, Benjamín Cuellar não descarta a derrocada das liberdades individuais. Ele garante que as condições estão postas para esse cenário, caso ocorram manifestações nas ruas e repúdio às "medidas draconianas" impulsionadas por Bukele. "Ha dois fatores que impossibilitam — pelo menos a curto prazo — que tal cenário se materialize: o medo da população, não mais de gangues, mas de policiais e militares; e a inexistência de uma ação coordenada das vítimas da pobreza."
VOZES DA DISSIDÊNCIA
"Nayib Bukele concentrou tanto poder, porque a população está insatisfeita com os partidos tradicionais. Ele fazia parte da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), por onde foi prefeito de San Salvador. Ao se indispôr com a FMLN, por não querer apoiar sua candidatura presidencial, criou o partido Nuevas Ideas. Ao ganhar as eleições, pediu mais deputados, e o povo lhes deu. Depois, removeu magistrados para controlar o Supremo Tribunal de Justiça. Também destituiu o procurador-geral para que não pudesse processar ninguém em favor do governo."
Marcela Villatoro, deputada pela Alianza Republicana Nacionalista
"Em uma democracia, os poderes são desenhados para manter o equilíbrio, não para serem subservientes. Em El Salvador, não há independência do Judiciário, nem contrapesos ou transparência. Cada vez menos há espaço para a dissidência. Com responsabilidade e com profunda preocupação, devemos chamá-lo pelo que é: El Salvador vive sob um regime autoritário com características de ditadura. Não é necessário um golpe; basta eliminar os controles democráticos e governar por cima da Constituição."
Francisco Lira, deputado do Arena, partido da direita conservadora
"A concentração de poder é resultado de 30 anos de uma maneira de fazer política com corrupção, sem prestação de contas e com traços autoritários. Os partidos que antes governaram nunca cultivaram uma democracia sólida, com instituições fortes. O que estamos vivendo é resultado de tudo isso. Depois dos acordos de paz de 1992, tínhamos que começar a pensar em construir uma democracia. Isso náo ocorreu. A população ficou decepcionada e acabou por encontrar nova opção, uma aparente salvação, que se mostra igual ou pior."
Claudia Ortiz, deputada pelo partido liberalista e anticomunista Vamos
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"Nayyib Bukele concentrou tanto poder, porque a população está insatisfeita com os partidos tradicionais. Ele fazia parte da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), por onde foi prefeito de San Salvador. Ao se indispôr com a FMLN, por não querer apoiar sua candidatura presidencial, criou o partido Nuevas Ideas. Ao ganhar as eleições, pediu mais deputados, e o povo lhes deu. Depois, removeu magistrados para controlar o Supremo Tribunal de Justiça. Também destituiu o procurador-geral para que não pudesse processar ninguém em favor do governo."
Marcela Villatoro, deputada pela Alianza Republicana Nacionalista
"Em uma democracia, os poderes são desenhados para manter o equilíbrio, não para serem subservientes. Em El Salvador, não há independência do Judiciário, nem contrapesos ou transparência. Cada vez menos há espaço para a dissidência. Com responsabilidade e com profunda preocupação, devemos chamá-lo pelo que é: El Salvador vive sob um regime autoritário com características de ditadura. Não é necessário um golpe; basta eliminar os controles democráticos e governar por cima da Constituição."
Francisco Lira, deputado do Arena, partido da direita conservadora
"A concentração de poder é resultado de 30 anos de uma maneira de fazer política com corrupção, sem prestação de contas e com traços autoritários. Os partidos que antes governaram nunca cultivaram uma democracia sólida, com instituições fortes. O que estamos vivendo é resultado de tudo isso. Depois dos acordos de paz de 1992, tínhamos que começar a pensar em construir uma democracia. Isso náo ocorreu. A população ficou decepcionada e acabou por encontrar nova opção, uma aparente salvação, que se mostra igual ou pior."
Claudia Ortiz, deputada pelo partido liberalista e anticomunista Vamos
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