
Quem sobreviveu àquela manhã de 6 de agosto de 1945 tornou-se uma memória ambulante do dia em que Hiroshima se transformou no inferno. Mesmo 80 anos depois, os hibakushas e descendentes de primeira geração trazem marcas profundas do primeiro bombardeio nuclear da história. Também se transformaram em pacifistas por direito, defensores da não proliferação atômica. O Correio entrevistou dois sobreviventes da bomba atômica e a filha de Takashi Morita, presidente da Associação Hibakusha Brasil pela Paz. Em 2024, a ONG Nihon Hidankyo, que representa as poucas vítimas ainda vivas, foi laureada com o Nobel da Paz — uma das maiores distinções.
- Ele lançou a bomba atômica sobre Hiroshima e não se arrependeu disso
- Nobel envia um basta para os arsenais nucleares e um apelo à paz
Com a saúde abalada, Kunihiko Bonkohara, 85 anos, aceitou o convite da Prefeitura de Hiroshima para viajar de São Paulo ao Japão e participar das cerimônias desta semana. "Eu tinha cinco anos e meu pai me protegeu. De manhã, ele iria ao centro de Hiroshima. Fazíamos parte de uma comunidade que prestava serviço voluntário, abrindo vãos entre as casas, para que as bombas incendiárias não queimassem os imóveis. Meu pai pediu que eu ficasse com ele no escritório, enquanto minha mãe e minha irmã foram ao centro", contou Bonkohara, com a ajuda de Yasuko Saito, 78, filha do também sobrevivente Takashi Morita, falecido em agosto de 2024, aos 100 anos.
Segundo Bonkohara, o pai cobriu-o com o corpo no momento da explosão e teve as costas perfuradas por estilhaços de vidro. "Moradores o lavaram em um córrego. Depois, meu pai me colocou sobre a bicicleta e fomos procurar os corpos da minha mãe e da minha irmã. Nunca mais as encontramos. Apesar de muito novo, eu consigo me lembrar de uma cena. Hiroshima era banhada por sete rios. Todos eles estavam repletos de pessoas machucadas e procurando por água", relatou ele. "Os corpos ficavam boiando nos rios."
Com 12 tripulantes, o bombardeiro B-29 Enola Gay, da Força Aérea dos EUA, despejou a bomba "Little Boy" ("Pequeno Garoto"), às 8h15 (hora local) de 6 de agosto de 1945. O artefato explodiu a 600m de altura, e a detonação gerou uma bola de fogo de 274m de diâmetro. Dentro da nuvem de cogumelo, a temperatura atingiu 3.871 graus Celsius, evaporando pessoas e animais e derretendo prédios. A onda expansiva e radioativa viajou a 1.583km/h. Pelo menos 70 mil pessoas morreram instantaneamente.
Moradora de São Paulo, Junko Watanabe, 82, era uma criança de dois anos e escutou dos pais como sobreviveu. "Era um lindo dia de verão. Minha mãe segurava meu irmãozinho em frente à nossa casa. Ele era dois anos mais velho que eu. Brincávamos em frente ao santuário local. Às 8h15, um vento forte soprou repentinamente e toneladas de papel carbonizado caíram. Surpresa, minha mãe veio rapidamente nos buscar. Foi então que começou a cair uma chuva negra. Acabamos contaminados pela radiação", disse, por telefone. "Depois disso, tive diarreia, que piorava a cada dia. Meu corpo não conseguia reter alimentos, e meus pais se conformaram com o fato de que eu não sobreviveria. Graças a Deus, ainda estou viva."
Watanabe mudou-se para o Brasil aos 24 anos e retornou ao Japão aos 38. Só então soube que era uma hibakusha e que tinha sido vítima da chamada "chuva negra". Ela teme que o pesadelo se repita. Em 2003, entrou para a Associação Brasileira pela Paz dos Sobreviventes da Bomba Atômica, fundada em 1984. "A situação global é de guerra. Pessoas matam umas às outras sem hesitação, e a ameaça do uso de armas nucleares tem sido usada para incutir medo. Nós, hibakushas, sabemos, física e mentalmente, o que são essas armas. Líderes mundiais continuam a fabricar esse arsenal, chamando-o de 'dissuasivo'. As armas nucleares são invisíveis, inodoras, intangíveis e contêm radiação. Se fossem usadas, as pessoas que as lançaram também sofreriam, e seria impossível trazer a paz para a humanidade", advertiu.
Desde Hiroshima, onde também participará das cerimônias na quarta-feira, Yasuko Saito contou que tanto o pai quanto a mãe são hibakushas. "Minha mãe era uma funcionária pública de 20 anos. Meu pai tinha 21 e era policial recém-formado do Exército japonês. Eles estavam a menos de 1.500m do hipocentro da explosão. Minha mãe estava na repartição e meu pai escoltava um grupo de trabalhadores que construíam um abrigo antiaéreo em uma colina próxima", afirmou, por telefone.
Saiko disse que os pais faziam questão de transmitir aos filhos o que viveram naquela manhã. "Por ser policial, meu pai precisou ficar em Hiroshima até que a condição física dele não permitisse. Então, foi internado em um hospital improvisado em uma escola. Ele passou dias e noites no hipocentro. O prédio em que trabalhava foi um dos únicos que não se incendiou. Ele nos contou que viu um bondinho lotado de passageiros pegar fogo", lembra a filha. Ela confidenciou o temor de que Hiroshima e Nagasaki se repitam. "A ganância humana parece não ter limites. Meu pai, pouco antes de morrer, com 100 anos, dizia que os sobreviventes não trabalharam o suficiente para conscientizar a população sobre as guerras."
Brasília
Entre 6 e 15 de agosto, a Embaixada do Japão promoverá a exposição "80 anos de Hiroshima e Nagasaki — Inspirando a Cultura da Paz", no Salão Negro do Congresso Nacional. A mostra reúne coleções de painéis informativos, cedidas pelo Museu do Memorial da Paz de Hiroshima, traduzidas e apresentadas pela embaixada, com o apoio do Instituto Paulo Kobayashi. Será uma oportunidade para que o público conheça histórias como a de Sadako Sasaki, criança que se tornou símbolo de resistência, ao morrer pelos efeitos da radiação. A visitação, gratuita, pode ser feita das 9h às 17h.
DEPOIMENTO
Quando o navegador do Enola Gay fala ao Correio
Há exatos 20 anos, no 60º aniversário do ataque nuclear, eu me propus a entrevistar um dos tripulantes do Enola Gay, o bombardeiro B-29 que lançou a "Little Boy" sobre Hiroshima. Depois de fazer uma pesquisa no Google, descobri que o único tripulante vivo morava em um asilo na cidade de Stone Mountain, no estado americano da Geórgia. Como a cidade tinha pouco mais de 6,5 mil habitantes, foi fácil deduzir que haveria apenas um asilo ali. Depois de nova busca na internet, consegui o telefone do asilo e, minutos depois, Theodore "Dutch" Van Kirk estava do outro lado da linha. Com a voz firme, o navegador do Enola Gay não demonstrou qualquer arrependimento. Mas também manteve-se algumas vezes na defensiva.
Van Kirk contou que começou a receber instruções para o bombardeio depois do primeiro teste com a bomba nuclear, em 16 de julho de 1945. "Foi uma das missões mais fáceis da minha vida", contou-me. "Se tivéssemos as mesmas condições com que trabalhamos naquele dia, com certeza eu faria tudo de novo." Ao ser questionado se sente algum pesar pelo que fez, ele respondeu: "Jamais me arrependi. Nós jogamos a bomba para terminar com a guerra. Havíamos advertido os japoneses a aceitarem a rendição incondicional, mas ignorara". O ex-militar americano também me disse que "a bomba atômica salvou muitas vidas". No mesmo ano da entrevista, ele se encontrou com Paul W. Tibbets, o comandante da missão de bombardeio a Hiroshima, e com Morris Jeppson, responsável por armar o a avião. O trio posou para foto no cockpit do Enola Gay, exposto no Smithsonian National Air and Space Museum. Van Kirk morreu em 2014, no mesmo asilo. (RC)
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