Argentina

Senado da Argentina anula veto de Milei sobre lei para deficientes

Pela primeira vez em 22 anos, o Congresso derruba um veto do presidente e torna inapelável lei que concede recursos a pessoas com deficiência. Especialistas veem perda de prestígio do líder ultralibertário no Legislativo

Milei gesticula durante comício de encerramento da campanha para eleições legislativas na província de Buenos Aires  -  (crédito: Luis Robayo/AFP)
Milei gesticula durante comício de encerramento da campanha para eleições legislativas na província de Buenos Aires - (crédito: Luis Robayo/AFP)

Javier Milei estava a 9,8 mil quilômetros de Buenos Aires quando sofreu o pior revés em 635 dias de governo. Por 63 votos a favor e apenas sete contrários, o Senado da Argentina reverteu o veto do presidente argentino, tornando inapelável uma lei que libera mais recursos financeiros a pessoas com deficiência. Mas a derrota política vai além do mandato do líder ultralibertário: há 22 anos, o Congresso não revertia um veto do chefe do Executivo. A anulação do veto dependia somente de dois terços dos votos — 47 dos 70 senadores. Em agosto, a Câmara dos Deputados também tinha rejeitado a medida presidencial.

O placar elástico no Senado coloca em xeque o capital político de Milei dentro do Legislativo e coincide com o pior momento do governo. A Casa Rosada tem se esforçado para desvincular o presidente do escândalo de corrupção em torno da Agência Nacional de Deficiência (Andis). O nome de Karina Milei, irmã de Javier e secretária-geral da Presidência da Argentina, aparece em gravações de áudio que a associam ao recebimento de propina. Em visita-relâmpago a Los Angeles, onde se reuniu com investidores, Milei não comentou o revés no Senado. No próximo domingo, o presidente terá novo teste de fogo: as eleições na província de Buenos Aires, o distrito mais populoso da Argentina, governado pela oposição peronista.

Do lado de fora do prédio do Congresso Nacional, em Buenos Aires, centenas de argentinos que serão beneficiados pela medida celebraram o resultado da votação no Senado. "Me dá muita felicidade, como trabalhadora, mas também para que a pessoa com deficiência possa viver como merece", disse à agência France-Presse (AFP) Trinidad Freiberg, 23 anos, musicoterapeuta que trabalha com crianças com deficiência. A expectativa, agora, é a de que a Casa Rosada apela às instâncias judiciais para tentar "derrubar a derrubada" do veto. Em agosto, durante uma entrevista, o próprio Milei antecipou essa possibilidade. "Suponhamos que me rejeitem o veto, bem, eu vou judicializar isso, não terá efeito sobre o gasto público", havia dito o presidente.

Professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA), Miguel De Luca considera a decisão do Congresso como de "altíssimo impacto". "É a primeira vez, desde 2003, que o Legislativo rejeita um veto presidencial. Além disso, a medida consolida uma tendência na relação entre Milei e o Congresso", afirmou ao Correio. "O governo vinha com problemas políticos desde março deste ano. Assim mostram os resultados das votações no Congresso. Desde que assumiu, Milei enfrentou 34 votações legislativas: de 17, desde março de 2025, ganhou 14. No entanto, das 17 votações desde abril deste ano, o governo Milei perdeu 16."

Por sua vez, María Emilia Perri — professora de ciência política e de teoria dos partidos políticos e sistemas eleitorais na Universidad Nacional de Litoral, em Santa Fé (centro-leste) — avaliou que a decisão do Senado ocorre em um marco de forte instabilidade política e social. "O debate pela lei de deficiência esteve assinada pelas denúncias de corrupção envolvendo a Andis. O veto é um freio na batalha cultural que o governo tem dado frente a questões que eram indiscutíveis algns anos atrás como matéria de atuação do Estado, como a deficiência, as aposentadorias e a educação pública", disse ao Correio. No contexto das eleições legislativas de 26 de outubro, ela vê o aumento da discórdia entre Executivo e Legislativo. 

Milei gesticula durante comício de encerramento da campanha para eleições legislativas na província de Buenos Aires
Milei gesticula durante comício de encerramento da campanha para eleições legislativas na província de Buenos Aires (foto: Luis Robayo/AFP)

Segundo Carlos Fara, especialista argentino em opinião pública em comunicação de governo, destacou que o tema sobre pessoas com deficiência é de extrema sensibilidade no país. "Tanto no Senado quanto na Câmara a grande maioria dos legisladores derrubou o veto. Ante a sociedade, é muito complicado votar contra essa emergência. Uma das coisas que a maioria da sociedade e os próprios eleitores de Milei criticam é precisamente essa falta de empatia, de sensibilidade para com os deficientes e os aposentados", disse à reportagem. Para o estudioso, o momento exige sensibilidade e sensatez de Milei. 

"Efetivamente, Milei mão tem mais a força que possuía, com a qual conseguiu consenso para aprovar leis importantes no ano passado", observou Fara. Ele acredita que, antes da divulgação dos áudios sobre a corrupção na Andis, três fatores operavam para desgastar Milei. "Um deles era o próprio cansaço da sociedade em relação ao estilo do presidente, confrontativo e agressivo. Outro ponto tinha a ver com a falta de sensibilidade e de empatia que comentei. Uma terceira questão é a economia que estancou em sua recuperação. A inflação estagnou-se em 2%. A tudo isso, somou-se o tema dos áudios do escândalo, que obriga o governo a permanecer na defensiva", acrescentou. Ele explicou que Milei acreditava que usaria, como vantagens, o discurso de ser uma gestão sem corrupção e de luta contra a casta política. "Agora, ele suscita muitas dúvidas, inclusive entre o próprio eleitorado." 

EU ACHO...

Miguel De Luca, professor da Universidad de Buenos Aires
Miguel De Luca, professor da Universidad de Buenos Aires (foto: Arquivo pessoal )

"A decisão do Senado de anular o veto de Milei é um reflexo da crise causada pelo escândalo envolvendo o nome de Karina Milei, mas, também, pela postura do governo no momento de definir as listas dos candidatos ao Congresso. Vários legisladores atuais tinham expectativas de serem novamente candidatos (e se releegerem), mas o governo não colocou-os como candidatos."

Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires (UBA) 

Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires
Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires (foto: Arquivo pessoal )

"Está claro que o governo Milei tem perdido o apoio da opinião pública. Isso acaba se tornando um caldo de cultivo para que se derrube o veto a um tema tão sensível. Está claro que isso será amortecido, caso o governo Milei obtenha uma vitória cômoda nas eleições legislativas de 26 de outubro. Caso contrário, ficará sempre em uma situação complicada. O discurso de Milei sobre a motosserra atingiu o limite há vários meses."

Carlos Fara, especialista argentino em opinião pública em comunicação de governo

María Emilia Perri, professora de ciência política da Universidad Nacional del Litoral (em Santa Fé)
María Emilia Perri, professora de ciência política da Universidad Nacional del Litoral (em Santa Fé) (foto: Arquivo pessoal )

"É interessante pensar como a decisão do Senado mostra uma lógica que não era vista na política argentina desde 2003. Frente a uma nova política de agressão e de queixas, surge um Legislativo que coloca freios institucionais. É claro que isso debilita o Executivo, porque nem os próprios aliados defenderam Milei dentro do recinto do Congresso Nacional." 

María Emilia Perri, professora de ciência política da Universidad Nacional del Litoral (em Santa Fé)

 

  • Manifestantes celebram a rejeição ao veto, do lado de fora do prédio do Congresso Nacional, em Buenos Aires: revés político para a Casa Rosada
    Manifestantes celebram a rejeição do veto, do lado de fora do prédio do Congresso Nacional, em Buenos Aires Foto: Emiliano Lasalvia/AFP
  • Miguel De Luca, professor da Universidad de Buenos Aires
    Miguel De Luca, professor da Universidad de Buenos Aires Foto: Arquivo pessoal
  • Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires
    Carlos Fara, especialista em opinião pública em comunicação de governo, em Buenos Aires Foto: Arquivo pessoal
  • María Emilia Perri, professora de ciência política da Universidad Nacional del Litoral (em Santa Fé)
    María Emilia Perri, professora de ciência política da Universidad Nacional del Litoral (em Santa Fé) Foto: Arquivo pessoal
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postado em 05/09/2025 05:50
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