
Depois de 737 dias — ou 17,6 mil horas — de angústia, medo e saudade, eles voltaram para casa. Vinte dos 250 israelenses sequestrados pelo movimento islâmico palestino Hamas, em 7 de outubro de 2023, foram libertados ontem e reencontraram familiares. Ruhama Bohbot entrou no quarto do hospital de braços abertos para receber o filho Elkana, 36 anos, capturado em rave no kibutz de Re'im. A ex-refém Noa Argamani pôde beijar o namorado, Avinatan Or — de quem estava separada desde 9 de junho de 2024, quando foi solta. Após ser obrigado a cavar a própria cova pelo Hamas, Evyatar David, 24, emocionou-se ao ver os amigos na porta do Centro Médico Rabin, em Petah Tikva (centro). Do outro lado da fronteira, em Gaza, ônibus abriam espaço em meio à multidão, em Khan Yunis. Dentro, muitos dos 1.968 prisioneiros palestinos que ganharam a liberdade acenavam. Assim que saíram, foram recebidos com abraços, beijos e lágrimas. Horas depois, no Egito, o presidente dos EUA, Donald Trump, assinou o acordo de cessar-fogo, sem a presença de Israel e do Hamas. "Temos paz no Oriente Médio", avisou Trump.
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"Você é minha vida (...), é meu herói", repetia Einav Zangauker, enquanto segurava o rosto do filho Matan, 25. "Matan, meu amor, acabou a guerra", disse a mãe, que se tornou uma das maiores críticas do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e uma das faces do sofrimento dos parentes dos sequestrados. Os familiares de Guy Gilboa-Dalal, 24, gritavam e soluçavam ao revê-lo. "Acabou, passou", celebravam.
Os 20 reféns foram libertados em dois grupos: os primeiros sete — Matan Angrest, Alon Ohel, Omri Miran, Eitan, Guy Gilboa-Dallal e os gêmeos Gali e Ziv Berman — passaram à responsabilidade da Cruz Vermelha pouco antes das 8h pelo horário local (2h em Brasília) e, depois, às Forças de Defesa de Israel (IDF). O segundo grupo de 13 reféns foi entregue em seguida. Todos os 20 pareciam magros e frágeis, mas conseguiram caminhar. Em Tel Aviv, milhares de israelenses se reuniram na Praça dos Reféns para acompanhar a libertação.
Secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina, Mustafa Barghouti denunciou violações dos direitos humanos aos prisioneiros soltos. "Muitos dos presos palestinos libertados hoje relataram que foram submetidos a quatro dias de péssimo tratamento, incluindo espancamento, humilhação, privação de sono e comida, e muitas ameaças. Também foram algemados por um longo período, o que os deixou com ferimentos e escaras", contou ao Correio.
Em Ramallah (Cisjordânia), para onde parte dos presos libertados foram levados, Mahdi Ramadan descreveu a sensação de passar a primeira noite fora da prisão, ao lado dos país. "É um sentimento indescritível, como renascer", declarou à agência de notícias France-Presse. Nur Sufan, 27, teve a oportunidade de ver o pai pela primeira vez: Musa foi preso meses após seu nascimento. Samer Al Halabiyeh, outro libertado, disse à AFP que "os prisioneiros vivem da esperança". "Voltar para casa, para nossa terra, vale todo o ouro do mundo", desabafou.
Cadáveres
Os corpos de apenas quatro dos 28 reféns israelenses mortos foram repatriados para Israel: Guy Illouz, Yossi Sharabi, Bipin Joshi e o capitão das IDF Daniel Perez. Eles serão submetidos a exames para confirmação de identidade e a necropsia para determinar a exata causa da morte. Professor de relações internacionais da Universidade de Nova York, Alon Ben-Meir acredita que o Hamas eventualmente devolverá os 24 corpos restantes. "Eles disseram, desde o início, que alguns dos corpos seriam de difícil localização. Não há vantagem para o Hamas reter os cadáveres. A última coisa que desejam é violentar o acordo e dar a Netanyahu uma oportunidade de destruir o que restou de Gaza", comentou à reportagem.
Cristina Pecequilo, professora de relações internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), resumiu a manhã de ontem do Oriente Médio com os termos "realismo" e "otimismo pragmático". "Por um lado, a questão da libertação dos últimos reféns e dos prisioneiros palestinos realmente traz algum alento, do ponto de vista das famílias e dessa dinâmica do 7 de outubro de 2023", explicou ao Correio. "Por um lado, isso pelo menos encerra uma fase muito cruel do conflito para todos os envolvidos. Os prisioneiros palestinos libertados são relacionados não apenas ao massacre de dois anos atrás, mas a várias crises que ocorrem há várias décadas no Oriente Médio. Por outro lado, temos que considerar que, de três atores principais envolvidos, dois não necessariamente têm por objetivo político o encerramento das hostilidades ou a paz, em si: o Hamas e Israel."
Os 20 libertados
Matan Angrest, 22 anos
O suboficial Matan Angrest foi capturado em seu tanque perto da Faixa de Gaza depois de tentar impedir a infiltração de milicianos islamistas nas imediações da base militar de Nahal Oz. Os três colegas que estavam com ele no tanque morreram.
Gali e Ziv Berman, 28 anos
Os gêmeos foram sequestrados no kibutz Kfar Aza, incendiado pelo Hamas. Inseparáveis, os dois irmãos, que também têm nacionalidade alemã, trabalhavam no setor de produção musical. Seus pais e seu irmão mais velho sobreviveram ao ataque do Hamas.
Elkana Bohbot, 36 anos
Era um dos produtores do festival Nova, ao lado de seus amigos de infância Michael e Osher Waknin, massacrados em 7 de outubro ao lado de quase 370 pessoas neste evento de música eletrônica. No dia do ataque do Hamas, um vídeo foi divulgado e mostrava Bohbot algemado e com ferimentos no rosto, enquanto era conduzido pelos sequestradores. Casado com uma israelense-colombiana, é pai de uma criança pequena.
Rom Braslavski, 21 anos
Natural de Jerusalém, Rom Braslavski, também cidadão alemão, trabalhava na segurança do festival Nova. Entre 10h30, horário em que fez o último contato com sua mãe, e 13h30, horário em que desapareceu, ele permaneceu no local ajudando muitos espectadores. Durante o ataque, ele foi ferido nas duas mãos.
Nimrod Cohen, 21 anos
Em 7 de outubro de 2023, seu tanque teve problemas mecânicos perto do kibbutz de Nahal Oz. O soldado foi retirado do veículo pelos criminosos, ao lado de outros três militares. Seus pais, Yehuda e Viki Cohen, participaram de todas as manifestações, com cartazes e fotos que exigiam a libertação dos reféns.
David e Ariel Cunio, 35 e 28 anos
Os irmãos israelense-argentinos David e Ariel Cunio foram sequestrados ao lado de sua família quando estavam escondidos no quarto seguro da residência de David no kibutz de Nir Oz. Para obrigá-los a sair, os criminosos incendiaram a casa.
Evyatar David, 24 anos
Os pais de Evyatar David descobriram que seu filho estava em cativeiro em Gaza por uma foto recebida na rede social Telegram. Em 7 de outubro de 2023, ele estava com seu amigo de infância Guy Gilboa Dalal no festival Nova. Em agosto, o Hamas divulgou um vídeo em que Evyatar David aparece muito debilitado devido à falta de comida.
Guy Gilboa Dalal, 24 anos
Estava, com três amigos, em sua primeira festa de música eletrônica quando foi sequestrado no festival Nova. A família soube do sequestro ao assistir um vídeo dele e de seu melhor amigo, Evyatar David, amarrados em um túnel de Gaza. Sofreu abusos por parte dos sequestradores.
Maxim Herkin, 37 anos
Com cidadania israelense e russa, Maxim Herkin é pai de uma menina que agora tem cinco anos e que mora com sua mãe na Rússia. Maxim havia emigrado para Israel a partir da Ucrânia. Antes de ser sequestrado no festival Nova, ele escreveu para sua mãe: "Está tudo bem, estou voltando".
Eitan Horn, 39 anos
Foi sequestrado na residência de seu irmão mais velho, Yair Horn, no kibutz Nir Oz. Yair, sequestrado no mesmo dia e que sofre de diabetes, foi libertado em fevereiro deste ano. Até então, os irmãos permaneceram juntos em cativeiro.
Segev Kalfon, 27 anos
Trabalhava com seu pai na padaria da família em Arad, no Deserto do Neguev. Os milicianos o surpreenderam quando ele estava escondido em um arbusto à beira da estrada 232, que liga os kibbutzim localizados ao longo da fronteira com Gaza.
Bar Kuperstein, 23 anos
Antes de ser sequestrado no festival Nova, Bar Kuperstein tentou socorrer os espectadores da rave atingidos por tiros. Ele era enfermeiro do Exército, mas naquele dia não estava de serviço. Pouco depois do sequestro, foram divulgados vídeos em que aparecia amarrado.
Omri Miran, 48 anos
Nassagista e terapeuta que também possui nacionalidade húngara, foi sequestrado no kibbutz Nahal Oz, onde vivia, na presença de sua esposa Lichay Miran-Lavi e de suas duas filhas pequenas, que foram deixadas em liberdade.
Eitan Mor, 25 anos
Primogênito de oito crianças em uma família religiosa da colônia de Kyriat Arba, na Cisjordânia ocupada, Eitan Mor estava no festival Nova como agente de segurança com vários amigos.
Yosef Haim Ohana, 25 anos
Tinha o plano de fazer estudos de "coaching", mas ele foi sequestrado no festival Nova, onde trabalhava como barman. Foi visto ajudando feridos antes de tentar fugir com um amigo.
Alon Ohel, 24 anos
Talentoso pianista que começaria os estudos em uma faculdade de prestígio, foi sequestrado no festival Nova após retornar de uma viagem pela Ásia.
Avinatan Or, 32 anos
Nascido em uma família religiosa da colônia de Shilo, na Cisjordânia ocupada, é o segundo de sete irmãos. A namorada Noa Argamani, sequestrada ao lado dele no festival Nova, foi libertada em uma operação militar israelense em junho de 2024. Ambos tinham o projeto de morar em Beersheva, no sul de Israel, onde ele estudou engenharia.
Matan Zangauker, 25 anos
Sequestrado em sua casa, no kibutz Nir Oz, ao lado de Ilana Gritzewsky, sua companheira israelense-mexicana, libertada em 30 de novembro de 2023, no último dia da primeira trégua.
Fúria e alegria entre moradores de Nir Oz
A segunda-feira começou cedo para os amigos e familiares dos 20 reféns libertados pelo movimento islâmico palestino Hamas. "Não sabíamos a que horas eles seriam soltos. Então, nos levantamos às 5h30 (hora local) e os esperamos na estrada que leva a Gaza, um pouco antes de entrarem em Israel. Centenas de pessoas estavam lá, segurando bandeiras amarelas que se tornaram o símbolo dos reféns, com bandeiras de Israel e de Nir Oz", contou ao Correio Irit Lahav, sobrevivente do massacre de 7 de outubro de 2023 e moradora de Nir Oz, o kibutz com maior número de mortos (64) e sequestrados (74). "Às 10h, quando nos disseram que eles estavam próximos, ficamos entusiasmados. Assim que passaram por nós, gritamos 'Bem-vindos' e os aplaudimos. Alguém tocou um tambor. Não pudemos vê-los, porque as janelas dos carros eram escuras, mas sabemos que eles nos viram', disse.
De acordo com Lahav, os sete primeiros reféns que saíram de Gaza não eram de Nir Oz. "Apenas por volta de 11h30 (6h30 em Brasília), os 13 reféns restantes saíram, entre eles, os quatro amigos nossos. Eles dirigiram bem lentamente perto de nós e, dessa vez, pudemos ver alguns deles. Lágrimas rolaram de nossos rostos, depois de dois anos de espera e preocupação", afirmou.
"Podemos respirar"
A professora Hadar Rubi, 56, perdeu o pai em Nir Oz, 10 meses depois de ele sobreviver por oito horas ao horror de 7 de outubro de 2023. "Ele saiu do quarto seguro como um homem diferente de quando entrou, e o trauma levou-o à morte", disse ao Correio. Nesta segunda-feira (13/10), ela experimentava sentimentos conflitantes. "Finalmente, podemos respirar — foram dois anos segurando a respiração. É um imenso alívio ver os reféns libertados. Mas, para nós, da comunidade de Nir Oz, a alegria não está inteira: alguns dos sequestrados são de nossa comunidade, e não poderemos abraçá-los. Infelizmente, até agora, parece que seus corpos não retornarão para o enterro."
Rita Lifshitz, 61, perdeu o sogro, Oded Lifshitz, 83, executado pelo Hamas depois de 503 dias de cativeiro em Gaza. Ontem, ela sentiu um pouco de alegria. "Meu coração começou a dançar quando eu me reuni com os outros moradores de Nir Oz, na cidade de Kiryat Gat. Ficamos tão felizes por estarmos juntos, pois sabíamos que aconteceria (a libertação). Foi absolutamente incrível ver os irmãos David Cunio e Ariel Cunio, que nasceram em Nir Oz, de volta para casa, assim como Matan Zangauker e Eitan Horn", disse à reportagem. (RC)
EU ACHO...
"O governo israelense está traindo os cidadãos. Isso não começou em 7 de outubro de 2023. O que aconteceu dois anos atrás apenas nos mostrou a profundidade da traição. No topo das prioridades dos que estão no poder está uma coisa: ficar no poder. O fato de os corpos dos reféns não terem sido devolvidos é decepcionante, machuca e enfurece. Para mim, o acordo não foi assinado de forma clara e inequívoca sobre a obrigação do Hamas de devolver todos os corpos."
Hadar Rubi, 56 anos, professora de hebraico, moradora do kibbutz de Nir Oz
"Ainda estamos esperando pelos nossos cinco familiares mortos. Seus corpos precisam ser devolvidos a Israel para que possamos ficar felizes e para eles descansarem em paz em sua terra natal. Nesta terça-feira, começaremos novamente a lutar para termos corpos os nossos amigos mortos. Hoje (segunda-feira), nossos corações têm que estar felizes. Precisamos dessa felicidade em nossos corações."
Rita Lifshitz, 61 anos, terapeuta de animais, moradora de Nir Oz
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