Política externa

Trump reaviva a Doutrina Monroe e se volta para a América Latina

Estados Unidos adotam documento que reposiciona a estratégia de segurança mundial da Ásia para enfrentamento de "ameaças urgentes" na América Latina. Anúncio coincide com pressão por mudança de regime na Venezuela

Porta-aviões USS Gerald R. Ford, o maior do planeta, chega a St. Thomas, nas Ilhas Virgens dos Estados Unidos, no Mar do Caribe  -  (crédito: Abigail Reyes/Marinha dos EUA/AFP)
Porta-aviões USS Gerald R. Ford, o maior do planeta, chega a St. Thomas, nas Ilhas Virgens dos Estados Unidos, no Mar do Caribe - (crédito: Abigail Reyes/Marinha dos EUA/AFP)

A pressão sobre o regime do ditador venezuelano, Nicolás Maduro; as ameaças de combate ao narcotráfico e de intervenção militar direta na Colômbia e no México; os ataques a lanchas supostamente usadas pelos cartéis de drogas, no Mar do Sul do Caribe; e os planos de tomada do Canal do Panamá. Os olhos do Tio Sam voltaram-se para a América Latina não à toa. Documento publicado pelo governo do presidente Donald Trump, intitulado Estratégia de Segurança Nacional, redireciona a estratégia de segurança mundial de Washington para foco na América Latina e ressuscita a chamada "Doutrina Monroe", sob o nome de "Doutrina Colorário Trump". Ao citar o "desaparecimento da civilização europeia", o dossiê propõe recuperar o "predomínio dos Estados Unidos" no território latino-americano. 

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Com o propósito de propagar a visão "America First" ("Os EUA em primeiro lugar", pela tradução literal), o documento reposiciona a política externa da Casa Branca, nos últimos anos voltada para a Ásia. O texto anuncia que os Estados Unidos reajustarão sua "presença militar global para enfrentar ameaças urgentes em nosso Hemisfério (Ocidental), e se afastar de cenários cuja importância relativa para a segurança nacional diminuiu nas últimas décadas ou anos". 

Presidente da Colômbia entre 1994 e 1998 e secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) de 2014 e 2017, Ernesto Samper Pizano, 75 anos, acusa Trump de ter "destroçado" uma relação bilateral de mais de 30 anos de luta conjunta contra as drogas entre Colômbia e EUA. "Ele fez isso como parte de sua política equivocada de diplomacia ideológica, segundo a qual os Estados Unidos mantêm relações apenas com países ideologicamente alinhados ao neofascismo de Trump", declarou ao Correio, por e-mail.

Denilde Oliveira Holzhacker — doutora em ciência política e professora de relações internacionais na ESPM — considera a Doutrina Corolário Trump uma reedição da Doutrina Monroe, segundo a qual o continente americano é área de influência dos Estados Unidos. "Ela afirma que os EUA não podem permitir que potências regionais atuem na área. É o retorno de uma política com tendência mais intervencionista e mais voltada para as situações de uso da coerção, muitas vezes. A agenda para a América Latina envolve a fronteira entre EUA e México, a imigração e o controle do narcotráfico e de armas", disse à reportagem. 

Holzhacker alerta que essa política pode retomar um sentimento antiamericanista muito intenso na América Latina. "Sempre que os EUA adotaram uma ação como essa, causaram instabilidades internas e mudanças de regime, para que sejam mais alinhados aos interesses americanos. O Corolário Roosevelt, por sua vez, tazia a ideia de que se tem a coerção, mas também uma atuação que buscava a prosperidade, com investimentos americanos no Hemisfério Ocidental", observou.

A estudiosa percebe uma "clara indicação" à China de que os EUA não tolerarão uma presença chinesa marcante em questões estratégicas. "É uma posição que recoloca uma posição americana que gerou uma série de posicionamentos antiamericanos. O documento reinsere o continente americano como área de prioridade contra a ascensão de outros países, como a China. Na parte sobre a Ásia, o que fica claro é a identificação de que a China é a grande rival e que os EUA serão cada vez menos condescendentes na relação sino-americana", avaliou Holzhacker. "O cenário mais complexo é a parte sobre a Europa, em que o documento coloca o quanto Washington sairá do papel de protetor dos países europeus, ao posicionar a normalização com a Rússia."

DUAS PERGUNTAS PARA... 

ERNESTO SAMPER PIZANO, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998
ERNESTO SAMPER PIZANO, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998
ERNESTO SAMPER PIZANO, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998 (foto: Afp)
Como o senhor vê a retórica agressiva adotada pelos presidentes Donald Trump e Gustavo Petro nos últimos dias?
A Colômbia é parte da América Latina, uma região de paz no mundo. Isso não quer dizer que não existam princípios muito sólidos, como a defesa da soberania, a proteção aos migrantes ou o relacionamento com outros países mais fraternos com a região, como pode ser o caso de China e Espanha. Se Trump ousar dar um único passo que viole essas convicções compartilhadas, ele desencadeará uma conflagração com consequências imprevisíveis.
Até que ponto uma ação militar dos EUA pode ser eficaz no combate ao narcotráfico?
Na Colômbia, o combate às drogas não se resume apenas a lutar contra os narcotraficantes; envolve, também, combater as organizações criminosas por trás das guerrilhas. A Colômbia tem vasta experiência nessa luta. Se os Estados Unidos se envolverem, serão as primeiras vítimas desse conflito nas áreas mais negligenciadas da Colômbia. Trump não pode continuar falando de paz em Gaza e na Ucrânia enquanto se prepara para a guerra na América Latina, que por muitos anos foi aliada e um refúgio seguro para suas operações militares. Ainda nos lembramos vividamente da Operação Condor, quando os Estados Unidos apoiaram as ditaduras militares no Chile, no Brasil e na Argentina. Esse tipo de intervenção não pode se repetir. (RC)

EU ACHO...

Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM
Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM (foto: Arquivo pessoal )

"O documento reforça a visão do 'America First' ('Os Estados Unidos em primeir lugar') e a posição de uma política externa mais coercitiva, mas não intervencionista do ponto de vista global. Também uma política que tenta dar uma lógica e coerência às ações feitas pelo próprio Trump, neste ano. Há um reposicionamento da visão de mundo e em defesa dos interesses americanos, deixando parte de seus aliados em situação de menos proteção."

Denilde Oliveira Holzhacker, doutora em ciência política e professora de relações internacionais na ESPM

Hemisfério Ocidental no centro do interesse

Criada em 1823 pelo então presidente americano, James Monroe, a Doutrina Monroe determinava que as potências europeis eram obrigadas a respeitar o Hemisfério Ocidental como uma esfera de interesse dos Estados Unidos. Em suma, a Europa foi convidada a não interferir em assuntos do Hemisfério Ocidental — Américas do Sul e do Norte e Caribe.  

 

  • Colombian former President Ernesto Samper waves before the presentation of the book
    ERNESTO SAMPER PIZANO, presidente da Colômbia entre 1994 e 1998 Foto: Afp
  • Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM
    Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da ESPM Foto: Arquivo pessoal
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postado em 06/12/2025 05:50
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