
A recém-divulgada estratégia de segurança e defesa dos Estados Unidos, que resgatou a Doutrina Monroe sobre a hegemonia do país no Hemisfério Ocidental (as Américas), esconde um ingrediente mantido em sigilo, mas exposto pelo portal norte-americano Defense One, que afirma ter tido acesso a um rascunho do documento. Um trecho até então desconhecido prevê o aprofundamento das parcerias com quatro aliados — Hungria, Itália, Áustria e Polônia —, com o objetivo final de convencê-los a seguir os passos do Reino Unido e se desligarem da União Europeia (UE). Em comum, todos têm no governo e no sistema político uma presença forte da extrema-direita populista, que se identifica com elementos centrais do trumpismo, em especial o nacionalismo e a consequente reticência às políticas gerais do bloco.
O texto tornado público já tinha produzido mal-estar entre os aliados europeus, ao descrever o continente como uma região "em declínio". Menciona com especial ênfase a recente onda de imigração, em especial da África e do Oriente Médio, à qual atribui responsabilidade pelo que descreve como uma "extinção civilizacional". O documento, que todo governo dos EUA tem o dever de apresentar ao Congresso, critica a "censura à liberdade de expressão" na Europa e a "opressão aos opositores políticos".
O portal Defense One, no entanto, sustenta ter tido acesso a uma versão não publicada. Nela, é definida como parte da estratégia de segurança nacional dos EUA, para os próximos anos, uma aproximação dirigida aos governos de extrema-direita que compartilham visões defendidas pela Casa Branca desde o retorno de Donald Trump, em janeiro passado. São mencionados nominalmente os premiês da Hungria, Viktor Orbán, e da Itália, Giorgia Meloni. Embora não sejam hoje governados pela ultradireita, estariam no radar também a Áustria, onde a legenda mais votada na última eleição foi o Partido da Liberdade (FPÖ), e a Polônia, que escolheu como presidente Karol Nawrocki, do partido Direito e Justiça (PiS). O objetivo explícito seria "separá-los da União Europeia".
Afinidades
"Acho muito difícil o Trump produzir defecções na UE", avaliou, em entrevista ao Correio, o professor de relações internacionais Gunther Rudzit, da ESPM. "No caso de a Hungria sair, perde o poder de veto que pode exercer na prática sobre as decisões do bloco, e acho muito difícil que o governo americano assuma as transferências milionárias que a UE faz para o país." Ele lembra ainda que a premiê italiana, expoente do pós-fascista Fratelli D'Italia, chegou ao poder em versão amenizada e, hoje, aproximou suas posições das defendidas por parceiros "europeístas" — especialmente, a França de Emmanuel Macron.
O estudioso reconhece as afinidades políticas e ideológicas entre a extrema-direita europeia e ascensão e o trumpismo. Orbán, em especial, foi à época o único governante do continente a apoiar Trump na campanha eleitoral de 2016, quando conquistou o primeiro mandato presidencial. Em meio às atuais dificuldades econômicas, teria recebido de Washington o aceno para uma ajuda de emergência comparável aos US$ 20 bilhões prometidos por Trump ao aliado argentino Javier Milei. O próprio presidente dos EUA, falando recentemente ao site norte-americano Politico, alegou que "não se lembra" do compromisso.
"Orbán e Meloni são muito próximos (a Trump), mas não chegam a coincidir 100%" com suas ideias, pondera Rudzit. "Chefiam governos ultranacionalistas, xenófobos, que consideram o imigrante como uma ameaça à identidade nacional, da mesma maneira como Trump se refere ao 'sangue americano'", explica. "Têm visões de mundo próximas, e isso faz com que o governo americano se aproxime deles."
Mercosul
O professor da ESPM vê possíveis desdobramentos dessa movimentação no aguardado desenlace das negociações comerciais entre a UE e o Mercosul. O Parlamento Europeu acaba de aprovar uma versão revisada do acordo que os blocos pretendem firmar neste fim de semana, em Foz do Iguaçu, com o lado sul-americano sob a presidência rotativa do Brasil. O texto deve ser ratificado nos próximos dias pelo Conselho Europeu, composto pelos governos dos 27 países-membros, para incorporar um conjunto de salvaguardas favorecendo o agro europeu, em especial o francês.
"Não só essa estratégia nacional de segurança divulgada, mas também os vazamentos, devem fazer com que os governos europeus vejam com excelentes olhos essa parceria com o Mercosul, em especial tendo ainda o presidente Lula na liderança (do bloco)", acredita. "Pode até acelerar o processo entre os governos europeus, especialmente o francês, que é reticente quanto à abertura do seu mercado agrícola aos produtos brasileiros — uma área em que não têm competitividade nenhuma."
Rudzit lembra que o Mercosul tem hoje entre seus governantes o presidente da Argentina, Javier Milei, que é aliado incondicional de Trump e não faz segredo quanto a suas reticências em relação à integração regional e investe em relações prioritárias — inclusive econômico-comerciais — com Washington. "Quanto antes for fechado o acordo, fica tanto mais difícil um recuo do Mercosul."

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