OPINIÃO

Fraude não rima com Ordem

Correio Braziliense
postado em 06/11/2021 06:00
 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

Por LUANA VALÉRIO SANTANA DA SILVA — Advogada, mestra em direito

NELSON INOCÊNCIO — Professor-doutor, membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros(UnB)

VERA LÚCIA SANTANA ARAÚJO — Advogada, integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)  

"O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei."

O comando jurídico que integra a advocacia à administração da Justiça vem do artigo 133 da Constituição Federal, sendo certo que tal dispositivo traz à categoria profissional uma vinculação maior para com o cumprimento da Carta.

Na qualidade de agente indispensável à administração da Justiça, o advogado, a advogada, exercitando a única profissão constitucionalmente posta, adquire responsabilidades públicas, e tanto é assim que a Ordem dos Advogados do Brasil constitui um "serviço público", que tem por finalidade "defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas". É o teor do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. (art. 44, I)

Em processo eleitoral que instituiu política de paridade de gênero para compor seus quadros, as chapas concorrentes à direção do sistema da Ordem terão 50% de mulheres, e isso trará grandes impactos nas políticas de gestão interna e na intervenção externa que é própria da atuação da OAB.

Noutra ponta, na mesma esteira da democratização interna para o exercício do poder, a OAB aprovou política de cotas raciais, destinando 30% das vagas para negros, negras. E aqui não trataremos do longo processo que culminou neste formato para a inclusão de herdeiros e herdeiras dos legados afro-jurídicos à advocacia nacional. Recordemos Esperança Garcia, negra escravizada no Piauí, que postulou por tratamento digno, em pleno regime de escravidão, e Luiz Gama, autodidata que também sob a égide da desumanidade intrínseca à coisificação das gentes, construiu teses jurídicas de uma litigância estratégica absolutamente genial.

Assim, tomando por base apenas a efetivação das cotas raciais para as eleições que ocorrerão neste mês, crescem as denúncias de fraudes mediante o falseamento da autodeclaração, pasmem! O/A profissional, cuja ética impõe o "... proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia", como preceitua a Lei nº 8.906/94, o referido Estatuto, se autodeclara negro, negra, para usurpar vagas destinadas a profissionais de identidade racial negra. Isso corrompe no nascedouro uma política institucional trazida para a advocacia com manifesto atraso em relação à magistratura, Ministério Público e demais carreiras jurídicas que adotam as cotas nos seus concursos.

A experiência da Universidade de Brasília (UnB) nos fornece elementos acerca dessas ações fraudulentas. Não por acaso, em decisão histórica, aquela instituição decidiu pelo cancelamento de matrículas e cassação de diplomas de graduação, em decorrência das denúncias da prática de falsidade ideológica no processo seletivo por cotas raciais para acesso à UnB. Comissões compostas por servidores foram constituídas em duas fases. A última comissão, ao final dos trabalhos, encaminhou relatório à Reitoria que endossou o parecer recomendando a expulsão de cerca de 15 estudantes autodeclarados negras/os, mas cujos fenótipos não correspondiam às exigências dos editais.

A UnB, diga-se de passagem, provou do amargo veneno, ao abolir as bancas de heteroidentificação nos certames com cotas raciais, como várias outras instituições federais de ensino superior. A noção perversa de que tais bancas se constituíam em tribunais raciais, viabilizou as fraudes, para não dizer institucionalizando-as. Cientes da ausência de abordagens verificadoras da autodeclaração, muitas pessoas se sentiram livres para burlar as regras estabelecidas.

A OAB, como entidade com amplo respeito da sociedade, não pode e não deve permitir que a autodeclaração seja critério único para qualquer disputa. A overdose de ilícitos obrigou o Poder Público a normatizar sobre as bancas de heteroidentificação, necessárias à coibição de abusos. Insistir no erro pode trazer sérios malefícios a uma instituição criada com propósito oposto aos gestos de menosprezo às leis que regem nossa sociedade.

Os tempos estranhos que o Brasil atravessa têm produzido toda sorte de afronta à Carta Magna. A OAB costuma ser demandada para cumprir com seu papel constitucional na defesa da ordem democrática, mas um processo eleitoral que se inicia viciado, violando a diversidade da representação que viria das urnas, retira da Ordem a legitimidade para ocupar os assentos institucionais dados por sua atuação adstrita à Carta. Entregar-se à trapaça eleitoral é renunciar à altivez para bradar, denunciando as fraudes que conspiram contra a democracia!

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