OPINIÃO

Nossos mortos estão vivos e vibrando dentro de nós

Correio Braziliense
postado em 07/11/2021 06:00

Dentre as várias facetas que possibilitaram, em seu conjunto, ascensão do ser humano ao patamar civilizatório, juntamente com o domínio da agricultura, do fogo, da vida sedentária, está o culto aos antepassados. Comum a todas as civilizações antigas, o ritual de celebração e de rememoração dos entes se constituiu em um dos pilares que resultaria, posteriormente, na formação embrionária da religião.

O culto aos mortos, em seu sentido ontológico, permitiu a humanidade estender para o pretérito o significado de sua existência, ligando-a até o presente, o que, por sua vez, ensejou expandir o sentimento de existência para o futuro. Em outras palavras, as experiências trazidas pelos entes do passado, possibilitaram a existência presente com mais conforto e segurança. A própria longevidade de cada indivíduo, inclusive seu prazo de validade, como ser senciente, colocava dentro de um espaço-tempo, os limites de atuação da espécie.

Qualquer projeto a médio e longo prazo deveria ser desempenhado dentro do espaço entre determinadas luas. Muito mais do que simples rituais metafísicos,a meditação sobre a personalidade e os acontecimentos passados desencadearam na espécie humana o desejo pelas possibilidades vindouras, abrindo também espaço para o sentido da abstração. Cultuar aquilo que está ausente e que, portanto, não tem materialidade presente ensejou no homem pré-histórico o surgimento do pensamento abstrato, transposto também para a arte rupestre, que é o registro gráfico e material de algo espiritual e aleatório.

O desenvolvimento do pensamento abstrato distanciou o homem racional do animal irracional, dotando-lhe da capacidade única de projetar suas sensações para fora e longe de si mesmo, no espaço e no tempo. O que fazer amanhã, ou na próxima estação chuvosa? O que fazer quando o inverno voltar? Como sobreviver quando tudo estiver, mais uma vez, coberto de neve? São elucubrações, que, partindo de questões práticas e urgente, lançaram o indivíduo para o futuro, num mundo povoado apenas pelo pensamento abstrato. O que é hoje apenas lembrança abstrata foi, anteriormente, realidade concreta e palpável. Dessa forma, a construção de nosso futuro está indissociavelmente e intimamente ligada a fatos passados, constituindo-se no alicerce do momento presente e na base do que está por vir. Não é por outra razão que o indivíduo torna-se, essencialmente um ser do porvir, ou um ser do vir a ser, sempre incompleto no presente, buscando sua complementação no amanhã.

Deixados de lado esse e outros aspectos, objetos do estudo da antropologia cultural e dando um salto no tempo até aos dias atuais, experimentados agora pela sociedade brasileira, o que podemos perceber, à primeira vista, é que o encurtamento de nossa memória factual, assolada pela insuficiência de informações ou pelo excesso delas, fez de cada um de nós, seres inertes e indiferentes aos acontecimentos diuturnos à nossa volta.

Esse desprezo pelas experiências do passado fez-nos reféns de nós próprios, num estado de letargia permanente, aceitando de bom grado o prato frio que nos servem. Assuntos como a destruição da família, a violência banalizada, a confusão sexual imposta à crianças parecem não possuir mais o condão de nos fazer atuantes para moldar a realidade às nossas melhores expectativas.

A visita ao túmulo dos antepassados, sugerida pelo Dia de Finados, é cada vez mais um ritual desprovido de sentido para as novas gerações, que veem nesse costume um apego a situações que não fazem mais sentido. Mesmo sabendo que o que está lá, depositado na tumba do parente falecido é apenas o que foi sua carcaça carnal, como a casca seca da cigarra colada à árvore, o cultoa essa passagem, pela qual todos iremos transpor um dia, guarda uma importância histórica, cultural, antropológica e até espiritual que nos liga diretamente às nossas raízes.

Não por outra razão, muitos cemitérios ainda hoje mantêm bancos dispostos ao lado dos túmulos, para que neles os vivos meditem sobre a efemeridade da vida. O que, à primeira vista, parece um ritual do passado vazio e sem expressão concreta é, na verdade parte da construção humana, uma obra que vem nos trazendo desde o passado longínquo até aos dias atuais.

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