ECONOMIA DO CUIDADO

Artigo: Economia do Cuidado: de tema do Enem à agenda do G20

No Brasil, as trabalhadoras domésticas experimentam um alto grau de precarização, com renda média abaixo de um salário mínimo

Sisu usa notas do Enem de 2023 -  (crédito: Luis Nova/CB)
Sisu usa notas do Enem de 2023 - (crédito: Luis Nova/CB)
postado em 09/03/2024 06:00

O tema da redação do ENEM 2023 sobre os desafios para o enfrentamento do trabalho de cuidado no Brasil conferiu visibilidade nacional para uma dimensão da economia que se manteve convenientemente ignorada por nossa sociedade patriarcal forjada pela escravidão. O tema habita desproporcionalmente o cotidiano das mulheres brasileiras que, segundo estudo da FGV IBRE de 2023, são as responsáveis por 65% do trabalho não pago de afazeres domésticos e cuidados nas famílias. Essa divisão sexual do trabalho se sustenta a partir de visões socialmente construídas sobre a competência natural das mulheres para atividades de cuidado, historicamente subalternizadas. Contudo, as desigualdades de gênero precisam ser cruzadas com outras, como as de raça e de classe, estruturantes da sociedade brasileira, para que, ao falarmos da opressão das mulheres, não terminemos invisibilizando as mulheres negras, indígenas e migrantes, que são as mais afetadas pelo ônus do trabalho de cuidado. No Brasil, as trabalhadoras domésticas, 65% das quais são negras e a maioria com idade acima de 40 anos (segundo o Diesse, 2022), experimentam um alto grau de precarização, com renda média abaixo de um salário mínimo, baixo nível de formalização e desproteção social.

Se em novembro de 2023, um tema tão íntimo da sociedade brasileira ainda foi visto como distante sobretudo por parcela conservadora e masculina da sociedade encastelada no que Joan Tronto chama de “irresponsabilidade privilegiada”, em novembro de 2024 o tema estará presente, ainda que de forma tímida, na agenda do G20, o encontro das 20 maiores economias do mundo, que terá lugar no Rio de Janeiro entre os dias 18 e 19 de novembro. Tanto num caso como no outro, o tema continuaria sendo silenciado não fosse as lutas dos movimentos sociais, feminista, negro, das trabalhadoras domésticas, de migrantes, entre outros.

A incorporação da economia do cuidado na agenda de um agrupamento como o G20, criado em 1999 como uma extensão do G7, para lidar com crises financeiras, só foi possível em função da disputa feita pelas feministas, desde a década de 70, em torno do significado de economia, tradicionalmente reduzido à dimensão mercantil, monetária e da produção. O ativismo feminista, que no G20 se articula principalmente no W20 (grupo de engajamento das mulheres), foi fundamental para revelar a natureza androcêntrica da economia ortodoxa centrada no ideal masculino de racionalidade, autonomia e livre movimentação na esfera pública e, ao fazê-lo, abrir espaço para que o cuidado ganhasse espaço nos debates e políticas públicas. Questionando a dita independência da esfera econômica, as feministas evidenciaram a conexão entre as esferas públicas, do trabalho produtivo, e a esfera privada, da reprodução e do cuidado, afinal é esta última que assegura a reprodução da força de trabalho remunerada e produz bem público em termos de bem-estar para as coletividades. Por todas estas razões, a economia do cuidado deve estar na agenda do G20 como um problema de política pública que deve engajar mulheres, mas também atores tradicionalmente desresponsabilizados pelas tarefas de cuidado, como os homens, o Estado e as Organizações Internacionais, implicando-os na provisão das condições para que as necessidades básicas daquelas pessoas sob cuidados ou daquelas que cuidam sejam atendidas, por exemplo, através de cursos de capacitação, da provisão de serviços extrafamiliares - como no caso de creches- , licenças, programas de transferência de renda, etc.

Outros elementos têm potencial para avançar esta agenda no contexto da presidência rotativa assumida pelo Brasil este ano. A questão do enfrentamento às desigualdades foi selecionada pelo presidente Lula como central para a presidência brasileira. O discurso do presidente Lula na Cúpula do G20 na Índia em 2022 antecipou esta questão ao colocar a falácia da crença de que o crescimento econômico por si só, sem redistribuições, reduziria as disparidades, uma vez o mercado continua indiferente às mulheres, minorias raciais, população LGBTI+ e pessoas com deficiência. Por outro lado, o fato de que a África do Sul irá sediar o G20 em 2025, pode garantir a continuidade das preocupações dos países do Sul com as assimetrias globais. Outro ponto de atenção, reivindicado historicamente pelo movimento negro, e que, em função de tal luta, vem ganhando espaço na agenda do G20 no Brasil é o enfrentamento ao racismo. Embora ainda não exista um grupo de engajamento focado especificamente nas relações raciais, diferentes grupos de engajamento vêm destacando a importância da transversalização das questões raciais na agenda do G20 a partir do entendimento de que as hierarquias globais de raça combinadas com as opressões de gênero, sexualidade, com o capacitismo, entre outras, atravessam as discussões econômicas, financeiras e climáticas. Esse enfoque pode contribuir para que a discussão sobre economia do cuidado, forjada a partir da experiência das mulheres das classes médias europeias e norte-americanas, desvele novas camadas de exploração como aquelas relativas à terceirização do trabalho de cuidado e doméstico para as mulheres racializadas, seja nacionalmente, seja internacionalmente por meio do fluxo migratório do Sul a partir das linhas de uma divisão internacional racializada e genderizada do trabalho, onde as mulheres negras vêm experimentam condições precárias de trabalho no Norte Global, em geral, longe de seus filhos e filhas.

*Marta Fernández

 

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