
José Sabino, diretor da produtora Natureza em Foco e professor da UEMS, e Eduardo Bessa, professor da Faculdade UnB Planaltina e pesquisador da Rede Biota Cerrado
Imagine um vasto bioma tão grande quanto o México, incrustado no coração do Brasil, repleto de vida e segredos. Agora imagine que, de toda essa imensidão, menos de 10% está protegida — uma área menor que o estado do Amapá. Esse bioma é habitado por uma população equivalente à chilena, mas também por uma biodiversidade quatro vezes maior que a da Inglaterra. Esse é o Cerrado. A savana mais biodiversa do planeta é um verdadeiro tesouro natural, muitas vezes presente a menos de 5 quilômetros da sua casa.
- Leia também: O que aguardar dos novos líderes do Congresso
Descrever o Cerrado é como tentar capturar a essência de um mosaico em constante mudança. Não há apenas um tipo de Cerrado. Ele é formado por um conjunto de paisagens que variam radicalmente. De veredas alagadas com buritis imponentes, a cerradões densos com árvores altas, até os campos limpos onde predominam as gramíneas nativas. Por padrão, o Cerrado é retratado como uma vegetação de árvores baixas e retorcidas, com cascas espessas e folhas grossas, adaptadas às condições severas da estação seca. O clima é quente, marcado por duas estações bem distintas: uma chuvosa entre outubro e março, e uma estação seca, intensa e longa, como a que vivemos no agora.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Definir quantas espécies habitam o Cerrado é um desafio, mas estima-se que o bioma abrigue aproximadamente 330 mil, incluindo mais de 12 mil plantas, quase 200 mamíferos e 200 répteis e cerca de mil aves. Mesmo nas áreas mais visitadas pelas pessoas, a biodiversidade do Cerrado ainda guarda segredos. Em 2023, uma expedição à Chapada dos Veadeiros revelou nada menos que 89 espécies desconhecidas pela ciência, o que exemplifica o tamanho do nosso desconhecimento e o quanto há para ser desvendado nesse bioma extraordinário.
O Cerrado também é conhecido como o berço das águas. Abriga nascentes de algumas das mais importantes bacias hidrográficas da América do Sul, como Tocantins-Araguaia, São Francisco e Prata. Essa riqueza hídrica não só sustenta a biodiversidade local, mas também desempenha um papel essencial na dinâmica das águas do Brasil.
Estimativas confiáveis sugerem que o Cerrado ainda abriga um vasto número de espécies não descritas, especialmente em grupos como plantas, insetos, anfíbios e micro-organismos. Algumas investigações indicam que até 30% das espécies do bioma podem não ter sido formalmente catalogadas pela ciência. A flora do Cerrado, por exemplo, continua revelando um número expressivo de espécies novas a cada ano, e os peixes anuais são outro grupo com descobertas recentes, e já ameaçados de extinção.
Entre os principais vazios de amostragem da biota do Cerrado, destacam-se as regiões de difícil acesso, como áreas montanhosas e cavernas, as zonas de transição ecológica, onde o Cerrado faz fronteira com outros biomas, como a Amazônia e o Pantanal, além dos ambientes aquáticos, como veredas e nascentes de rios e riachos. Esses vazios dificultam o pleno entendimento da biodiversidade do Cerrado, mas também oferecem promissoras oportunidades para novas descobertas científicas. É preocupante perceber que algumas regiões ainda pouco conhecidas do Cerrado, como no Maranhão, são também áreas por onde se agrava o desmatamento.
- Leia também: Um Oscar pela memória de Eunice
Assim como o planeta enfrenta a crise climática, marcada pelo aquecimento global e eventos extremos, nós, cientistas, também lidamos com uma crise igualmente alarmante: a perda da biodiversidade. A destruição de habitats naturais, impulsionada pela expansão agrícola ou por queimadas, a introdução de espécies exóticas invasoras, como a braquiária, e a exploração predatória pelo homem, como a colheita indiscriminada de sempre-vivas, estão entre os fatores que mais ameaçam a diversidade biológica.
Além disso, poluição ambiental, agravada pelo escoamento de fertilizantes e agrotóxicos para rios e lagos, e o avanço da urbanização sobre áreas naturais, como observa-se no Park Way e no Mangueiral, no Distrito Federal, aceleram esse processo de degradação. O impacto mais visível é a redução de espécies icônicas e ameaçadas, como o tamanduá-bandeira, o mutum-de-penacho, a pererequinha Bokermannohyla sazimai ou a palmeira-jataí (Butia purpurascens).
Estamos perdendo espécies preciosas a um ritmo alarmante, muitas delas antes mesmo de serem completamente conhecidas pela ciência.
A crise da biodiversidade não é uma ameaça distante. Ela está acontecendo agora, silenciosamente, com consequências graves para os sistemas naturais e para o futuro da vida no planeta. Isso inclui a vida humana.