
Lier Pires Ferreira — PhD em direito, pesquisador do Núcleo de Estudos dos Países Brics (NuBRICS/UFF); Renata Medeiros — mestre em ciência política, advogada
Tendo os grandes estúdios de Hollywood como base, não surpreende que o Academy Awards tenha certo caráter conservador, expressando os ideais e os valores do establishment cultural norte-americano. Esse conservadorismo está presente, por exemplo, na escolha de Sem chão como melhor documentário em 2025. Em que pese sua força poética, é desconfortável pensar que as vozes dos palestinos Basel Adra e Hardman Ballal dependeram da colaboração dos israelenses Rachel Szor e Yuval Abraham para ecoar.
Algo similar aconteceu com o prêmio de Melhor Atriz. As "sessentonas" Demi Moore e Fernanda Torres foram preteridas pela jovem Mikey Madison. Aos 25 anos, a talentosa Madison (Melhor Atriz) interpretou uma stripper do Brooklyn que vive um conto de fadas com um playboy russo. Embora o diretor Sean Baker (Melhor Direção) seja conhecido por sua pegada realista, Anora (Melhor Filme) replica a estigmatizante história da "gata borralheira" salva (e depois cuspida) por um príncipe encantado, sem problematizar a condição feminina imposta pela indústria do sexo. O sufocante etarismo exposto por Moore em A substância ou a resiliência feminina de Torres em Ainda estou aqui foram menos palatáveis ao Academy Awards.
Todavia, neste ano a Academia deixou um recado muito claro quanto aos riscos do autoritarismo nos Estados Unidos e no mundo. Não por outro motivo, entre os agraciados, há muitos filmes que têm a liberdade democrática como pano de fundo. É o caso de Sem chão, que, não tendo distribuição oficial em solo americano, enfrentando explícita censura, denuncia o extermínio palestino pelas mãos do governo Netanyahu, incondicionalmente apoiado por democratas e republicanos. Também é o caso de Brutalista, estrelado por Adrien Brody (Melhor Ator). O filme conta a história do judeu-húngaro László Tóth, que foge de uma Europa devastada pela Segunda Guerra (1939-1945) para uma América que, então, representava um porto seguro para imigrantes de diversas nacionalidades.
Ainda estou aqui (Melhor Filme Estrangeiro) segue a mesma trilha. A película de Walter Salles traz a luta de Eunice Paiva (Fernanda Torres) no contexto do assassinato de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) nos porões da ditadura. Sem caráter militante, o filme nos convida a refletir sobre os horrores de um regime de exceção, que, sob a bandeira do anticomunismo, do amor à pátria e da ordem, fez do assassinato e da tortura uma política de Estado, tratando adversários como inimigos.
Por isso, devemos desconfiar de líderes extremistas, como Donald Trump e outros que "flertam" com o autoritarismo. O argentino Javier Milei, o salvadorenho Nayib Bukele e o alemão Max Krah, assim como o francês Jordan Bardella e Giorgia Meloni, a primeira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra da Itália, também estão nessa categoria.
O alerta também vale para o Brasil. A democracia duramente reconquistada em 1985 não terá vida longa se não for defendida pela sociedade. Os atos de 8 de janeiro indicam que, ao arrepio da verdade histórica, muitos ainda desejam uma intervenção salvacionista das Forças Armadas, relativizam os crimes cometidos pela ditadura e fazem um balanço positivo do período entre 1964 e 1985.
A seleção dos agraciados neste ano com o Academy Awards confere uma rara oportunidade para que norte-americanos e europeus olhem pelo buraco da fechadura e antevejam o que pode lhes acontecer caso a democracia seja varrida para debaixo do tapete. O mesmo vale para o Brasil, onde cinéfilos e carnavalescos se dividiram entre o Oscar e a Marquês de Sapucaí.
Em sua diversidade, o prêmio mais cobiçado do cinema mundial deixa uma forte mensagem: regimes autoritários geram dor e sofrimento. Quase 80 anos após o fim da Segunda Guerra, a sombra do autoritarismo está novamente presente no Ocidente. Logo, a luta pela democracia tem que ser redobrada, pois, na política, como na vida, de nada vale a forma sem substância.