
Existe um fenômeno profundamente arraigado em nossa cultura que, mais do que um simples hábito danoso, deveria ser objeto de estudo sistemático e tema de uma espécie de terapia coletiva, conduzida com firmeza e objetividade, antes que essa compulsão venha a comprometer de maneira irreversível os laços que nos mantêm como nação. Trata-se da propensão nacional, quase inata, em depredar todo e qualquer bem público que se coloque ao alcance de nossas mãos, como se a destruição do que é comum fosse um gesto natural, inevitável e, por vezes, até justificável.
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Cidades de todo o país, reflexos imperfeitos de nossa identidade, carregam as marcas dessa mania niilista, dessa psicose urbana que transforma ruas, praças e monumentos em ruínas precoces. O cenário agrava-se à medida que nos afastamos dos grandes centros, onde a presença do poder público se dissolve até se tornar mera lembrança, permitindo que a sanha destruidora encontre campo fértil para manifestar-se sem pudor. É nesse vácuo de vigilância que desaparecem estátuas, bancos de praça, tampas de bueiro, luminárias, chafarizes ou mesmo jazigos inteiros. A lista é infinita, um inventário melancólico daquilo que se constrói com recursos coletivos e se perde na voragem de uma multidão que parece agir em concerto.
Essa compulsão pela ruína não poupa sequer os instrumentos da vida cotidiana: ônibus, trens, estações de metrô, abrigos de parada, rodoviárias, banheiros públicos, placas de orientação, nada escapa ao olhar corrosivo de uma sociedade que confunde vandalismo com catarse. É como se estivéssemos diante de uma guerra sem inimigos definidos, em que o adversário invisível somos nós mesmos. Hannah Arendt, em sua análise sobre a banalidade do mal, lembrava que os maiores desastres sociais não provêm de monstros excepcionais, mas de comportamentos cotidianos, aceitos sem questionamento. O vandalismo que corrompe o espaço urbano parece ecoar esse mesmo espírito: não se trata de gestos isolados, mas de uma corrosão silenciosa e repetida, que, somada, dá forma a uma paisagem em permanente estado de ruína.
Talvez, essa psicose coletiva encontre raízes no ambiente social em que estamos mergulhados. Afinal, um país em que mais de 60 mil pessoas perdem a vida anualmente em atos de violência, índice que supera as baixas de muitos conflitos armados no mundo contemporâneo, não poderia deixar de refletir também no espaço físico de suas cidades essa cultura da agressão, da ruptura e da ausência de limites.
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Como bem observou o antropólogo Roberto DaMatta, "a violência no Brasil é o avesso da cidadania"; e onde não há cidadania o espaço comum converte-se em território de disputa, sem regras, onde destruir o que é de todos equivale a afirmar uma espécie de poder efêmero sobre o caos.
Diante desse quadro, duas medidas apresentam-se como urgentes e inadiáveis. A primeira é a educação de base, incumbindo-se as escolas não apenas da alfabetização formal, mas da formação de cidadãos conscientes de que o patrimônio coletivo é extensão de si próprios. O sociólogo Émile Durkheim já advertia que a educação é, acima de tudo, "a socialização metódica das novas gerações". Não se trata, portanto, de mero adestramento para o trabalho, mas de um processo civilizador, em que se aprende, antes de tudo, a respeitar os limites, as normas e os símbolos que nos constituem como sociedade. Ensinar uma criança a zelar por um banco de praça ou por um mural histórico é, talvez, tão fundamental quanto ensiná-la a decifrar as letras de um alfabeto: sem o senso de pertencimento, todo conhecimento técnico será frágil, sujeito a desmoronar diante da primeira frustração.
A segunda medida, complementar à primeira, é a punição exemplar dos que se dedicam a alimentar esse círculo vicioso da degradação. Não se trata aqui de cultivar um punitivismo cego, mas de aplicar com rigor aquilo que Norberto Bobbio definia como "a sanção necessária à preservação do pacto social". É preciso que o vândalo, ao ser flagrado em sua ação destrutiva, saiba que a consequência virá rápida, proporcional e inevitável, seja no ressarcimento financeiro, seja na restrição temporária da liberdade. Sem isso, a impunidade continuará a operar como convite aberto para que a insanidade coletiva prossiga seu trabalho de dissolução.
Mas há uma dimensão ainda mais profunda e incômoda: o vandalismo não é apenas fruto de uma massa anônima e descontrolada, mas um reflexo do comportamento das elites políticas e administrativas. Quando os exemplos de cima reiteram, ano após ano, a negligência, a apropriação indevida e o desrespeito ao bem público, não surpreende que a população internalize o mesmo padrão, transformando-o em ação direta contra o espaço coletivo. Em última análise, o vandalismo contra o bem público não é apenas uma questão de segurança ou de urbanismo: é o sintoma de uma doença coletiva que exige tanto médicos quanto juízes, tanto professores quanto líderes exemplares.
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A frase que foi pronunciada:
"A propriedade pode ser destruída e o dinheiro pode perder seu poder de compra; mas caráter, saúde, conhecimento e bom senso sempre serão exigidos em todas as condições."
Roger Babson
História de Brasília:
Movimento justo, mas desorganizado, o dos funcionários da Novacap. Foram reivindicar aumento, mas a falta de um líder fêz com que a massa que ia participar de um movimento sério fizesse rir aos que serviam como espectadores. (Publicada em 10/5/1962)
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