
Guilherme Frizzera — doutor em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), coordenador do curso de relações internacionais na Uninter
A 80ª Assembleia Geral da ONU em Nova York foi palco de duas visões de mundo em choque. De um lado, Luiz Inácio Lula da Silva, com um discurso voltado ao multilateralismo. Do outro, Donald Trump, reafirmando a centralidade dos Estados Unidos. Ao ouvir atentamente, percebe-se que não se tratava apenas de estilos distintos, mas de projetos opostos para a ordem internacional.
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Trump falou menos à comunidade internacional e mais à sua base doméstica. Dividiu a realidade entre "nós" e "eles". O "nós" era seu governo, apresentado como sinônimo de prosperidade e força. O "eles" reunia a administração anterior, a desordem global e até a própria ONU, retratada como ineficaz. Nesse enquadramento, o presidente americano não se colocou como líder mundial, mas como guardião nacional, alguém que substitui a cooperação internacional por uma promessa de salvação doméstica.
Lula seguiu outro caminho. Dirigiu-se ao mundo e colocou o Brasil como voz do Sul Global. Seu "nós" era coletivo, formado por países que enfrentam desigualdade, autoritarismo e exclusão. Seu "eles" não era um adversário partidário, mas as forças que ameaçam a cooperação internacional. Ao afirmar que a pobreza é tão inimiga da democracia quanto o extremismo, ligou problemas internos a uma agenda global de desenvolvimento e paz. Defendeu a reforma das instituições multilaterais não para esvaziá-las, mas para adaptá-las à multipolaridade do século 21.
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Essa divergência de projetos fica ainda mais evidente na forma como tratam a desigualdade e suas consequências, como a migração. Para Lula, a fome e a pobreza estão na raiz da instabilidade e não podem ser enfrentadas com muros. "A democracia perde quando fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo", declarou. Sua resposta foi multilateral e econômica, propondo aliviar a dívida dos países mais pobres, ampliar a ajuda ao desenvolvimento e criar uma tributação global sobre os super-ricos.
Trump, por outro lado, tratou a migração como questão de segurança e ordem. Em sua lógica, o imigrante não é um reflexo da desigualdade, mas uma ameaça que viola a soberania e traz o crime. Sua solução foi clara: "Você vem ilegalmente aos Estados Unidos, você será preso, ou volta para o lugar de onde veio, ou algo pior do que isso". Assim, um fenômeno social complexo foi transformado em um caso de polícia.
A posição de Lula não é novidade, mas continuidade. Historicamente, a diplomacia brasileira sempre buscou autonomia, entendida como a capacidade de ampliar suas opções e reduzir dependências em relação às grandes potências. Seu discurso reforça essa estratégia de combinar diálogo com os centros de poder e alianças com países em desenvolvimento para ampliar a margem de manobra coletiva.
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Esse movimento também reflete uma tradição latino-americana de contestar a ideia de que o poder internacional se resume a peso econômico e militar. No livro Latin America confronts the United States (América Latina confronta os Estados Unidos, em tradução livre), Tom Long mostra que a região nunca foi mera espectadora. Em diferentes momentos, países latino-americanos conseguiram impor limites a Washington e até moldar suas escolhas. O Panamá é um exemplo marcante. Um país pequeno transformou a disputa pelo canal em bandeira internacional. Ao levar a questão à ONU, forçou os EUA a negociar tratados que devolveram a soberania panamenha. Não foi a força bruta que venceu, mas a capacidade de internacionalizar a causa e aumentar os custos diplomáticos para Washington.
Outro exemplo veio do Brasil sob Juscelino Kubitschek. Nos anos 1950, diante da recusa de Washington em apoiar um plano de desenvolvimento continental, JK lançou a "Operação Pan-Americana". Ao ligar o combate ao subdesenvolvimento à segurança do Ocidente na Guerra Fria, transformou a miséria latino-americana em questão estratégica. A iniciativa mobilizou outros líderes, levou à criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento e abriu caminho para a Aliança para o Progresso. Foi um caso em que um ator mais fraco, usando ideias e coalizões, conseguiu influenciar a política da superpotência.
Esses episódios mostram que a América Latina pode agir estrategicamente mesmo diante da assimetria. E ajudam a entender por que o discurso de Lula dialoga com uma doutrina atual de não alinhamento ativo. Em um mundo marcado pela disputa entre Estados Unidos e China, não basta a neutralidade passiva. A proposta é pragmática, engajar com todos os polos sem alinhamentos automáticos, priorizar a integração regional e o multilateralismo como ferramentas para defender interesses próprios.
Na ONU, os dois presidentes simbolizaram caminhos diferentes. Trump apostou na retração soberanista e na negação da cooperação. Lula recuperou a tradição latino-americana de autonomia e apontou para uma reforma da governança global. A escolha entre esses projetos dirá muito sobre o futuro da ordem internacional e sobre o espaço que caberá à América Latina nas próximas décadas.
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