
Fabrício Carrerette — mestre e doutor em ciências médicas pela UERJ, professor associado e pesquisador da UERJ, membro da Sociedade Brasileira de Urologia e da European Association of Urology
Hoje, apresento a minha aula da vida: não apenas como médico e pesquisador, mas como alguém que viveu no próprio corpo aquilo que estuda diariamente — o câncer de próstata. Quero compartilhar a história da minha trajetória profissional, pessoal e transformadora, o momento em que a ciência deixou de ser a prática para se tornar experiência vivida.
O resultado do exame trouxe uma verdade incômoda: mesmo conhecendo profundamente a medicina e tendo acesso à tecnologia mais avançada, eu estava vulnerável como qualquer homem. Receber o diagnóstico de câncer de próstata foi duro, especialmente porque, naquele momento, eu me encontrava em condições difíceis, mal alojado em uma UTI no interior do estado do Rio de Janeiro, acompanhando meu pai de 88 anos em procedimentos arriscados. Sou grato aos colegas que agilizaram o tratamento dele, para que eu pudesse voltar ao Rio e iniciar o capítulo mais desafiador da minha vida.
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Diante de três caminhos, precisei escolher. O primeiro, o mais tradicional, seria a cirurgia imediata, mas com chance maior de falhas. O segundo, apelidado por mim de "mítico", reunia promessas milagrosas e pouco resultado real. E o terceiro, o mais longo, exigia paciência e disciplina: uma preparação com novos medicamentos que reduzem a força do tumor, seguida da cirurgia. Foi esse que abracei, por acreditar na ciência e confiar que a pesquisa moderna ainda pode abrir portas para resultados mais consistentes.
A escolha, no entanto, não me poupou do peso emocional. Os efeitos do tratamento foram intensos: um esvaziamento da energia, da disposição e até da identidade masculina. Era como se apagassem um motor vital. Mas não me entreguei. Segui com disciplina, exercícios e trabalho, buscando manter vivo o meu propósito. Passei a sentir na pele o que tantos pacientes me confidenciaram ao longo dos anos. Entendi, de forma brutal e transformadora, que, por trás de cada prontuário, há uma vida em suspensão, esperando uma resposta, um gesto de esperança. Essa espera não é feita apenas de dias e noites, mas de dúvidas que corroem, de medos que insistem em permanecer, e de uma fé que precisa ser renovada a cada manhã.
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O que era previsível mudou de repente: novos exames mostraram que minha chance de resposta era mínima. Pensei em desistir e partir logo para a cirurgia. Mas respirei fundo e investiguei a resposta ao tratamento. Um exame avançado revelou que o tumor havia encolhido mais de 80%. Segui até o fim do protocolo. A cirurgia, então, foi um sucesso: o tumor removido, as funções recuperadas, a vida retomada. A ciência havia cumprido seu papel, mas o processo inteiro me ensinou que a jornada emocional pode ser tão ou mais difícil do que a jornada clínica.
Hoje, carrego apenas uma cicatriz pequena, mas ela guarda uma imensidão de aprendizados. Não alcancei o que os estudos científicos chamam de resposta completa, mas a vitória está em cada detalhe: em ter superado a doença, em ter aprendido que vulnerabilidade também é força, em ter descoberto que a mente pode sair maior de uma batalha que ameaça o corpo.
Aprendi que a vida, quando colocada à prova, se revela em sua intensidade mais pura, e que cada amanhecer depois da dor é também uma conquista silenciosa. É como se cada respiração carregasse a lembrança de que estar vivo já é, por si só, um triunfo. E essa percepção muda radicalmente a forma como se enxerga o tempo: não como uma linha contínua, mas como uma soma de instantes únicos, cada um deles digno de ser celebrado.
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O câncer me tirou certezas e dogmas, mas me deu algo maior: a capacidade de olhar diferente para cada paciente, para cada vida que confia em mim. Não sou mais o mesmo médico, e esse é, hoje, o meu maior prêmio. Sou alguém que já atravessou a tempestade e, por isso, pode oferecer mais que técnica: pode oferecer presença, escuta e humanidade. Carrego a ciência nas mãos, mas no coração levo a experiência de ter vivido aquilo que estudo. E talvez seja isso o que me torna, agora, mais inteiro — porque compreender o humano é, no fim, a missão maior da medicina.
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