ARTIGO

Sistemas alimentares: o futuro da justiça climática passa pelo campo

Ao acontecer na Amazônia, a COP30 dá visibilidade para a urgência de alinhar agricultura e clima. É o momento de reconhecer os sistemas alimentares como eixo estratégico do combate à crise climática

PRI-0810-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-0810-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)

VIVIANA SANTIAGO, diretora-executiva da Oxfam Brasil

O Brasil é celebrado como potência agroalimentar: exportamos grãos, carnes e frutas em volumes recordes. Mas essa abundância contrasta com a realidade de insegurança alimentar, que ainda atinge milhões. A boa notícia é que, em 2025, o país — mais uma vez — saiu do Mapa da Fome da ONU, após retirar mais de 40 milhões de pessoas da insegurança alimentar entre 2022 e 2024. Um grande avanço, mas longe do fim do problema.

Cerca de 27% dos domicílios enfrentam algum grau de insegurança alimentar, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que o acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de forma regular, sem comprometer outras necessidades essenciais, respeitando a diversidade cultural e ambiental, é limitado ou incerto, variando desde a preocupação com a falta de alimentos até a fome em si. Desse total, 5,3% estão em insegurança moderada, isto é, quando o acesso aos alimentos é comprometido de forma intermitente ou reduzida; e 4,1% vivem em insegurança severa, em que a capacidade de se alimentar de forma adequada está drasticamente limitada e a fome se impõe como realidade cotidiana. 

Esses dados demonstram como o Brasil segue desafiado pelo funcionamento de seus sistemas alimentares — o conjunto de processos que envolve produção, distribuição e consumo de alimentos. Atualmente, esse sistema se apoia na concentração de terra e renda, na exploração da mão de obra rural e na degradação dos territórios. Ele responde por mais de um terço das emissões globais de gases de efeito estufa. 

É importante, porém, diferenciar os papéis que coexistem nesse cenário. O agronegócio se apoia em monoculturas e na pecuária, avançando sobre biomas como a Amazônia e o Cerrado, voltado sobretudo à exportação de commodities e responsável por grande parte das emissões do país. Já a agricultura familiar tem um papel central no abastecimento interno: são responsáveis pela maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e brasileiras e, em muitos casos, articulam práticas mais diversas, de menor impacto ambiental e com maior vínculo comunitário.

A Amazônia ocupa um lugar fundamental nesse cenário, pois, longe de ser apenas a "floresta em pé", ela funciona como reguladora de chuvas que irrigam lavouras no Centro-Oeste, no Sudeste e na Bacia do Prata. Quando a floresta é derrubada — sobretudo para dar lugar à pecuária e à soja de exportação —, as consequências vão muito além da perda de biodiversidade: seca de rios, diminuição de chuvas, colapso de rotas de transporte fluvial e crescimento da vulnerabilidade de milhões de pessoas.

Proteger a Amazônia é também romper o ciclo vicioso que sustenta os atuais sistemas alimentares, e é justamente esse debate que estará no centro da 30ª Conferência Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), o principal espaço de negociação climática global, reunindo quase 200 países para avaliar os avanços do Acordo de Paris e definir novos compromissos de combate às mudanças climáticas.

Mais do que simbolismo geográfico, a conferência em Belém do Pará será um marco porque coloca frente a frente dois modelos. De um lado, o que se baseia em monoculturas, concentra riqueza e externaliza custos sociais e ambientais. De outro, alternativas presentes em diferentes territórios que mostram que é possível produzir de maneira justa, diversa e sustentável. Essa disputa não é abstrata: ela se materializa no cotidiano de trabalhadores rurais, de comunidades tradicionais e de milhões de famílias que convivem com a fome em um país abundante. E essas experiências mostram que a agroecologia é uma construção coletiva, que envolve agricultores, povos indígenas, quilombolas, organizações sociais e consumidores. Não se trata apenas de alternativas pontuais, mas de caminhos capazes de orientar políticas públicas e inspirar compromissos internacionais.

É nesse contexto que a COP30 assume relevância. O risco é que corporações e setores do agronegócio capturem o debate e empurrem falsas soluções, que prometem eficiência, mas reforçam a lógica de exclusão que concentra terra e renda e deixa milhões em insegurança alimentar. 

Ao mesmo tempo, a COP30 abre uma oportunidade rara. O fato de acontecer no Brasil e na Amazônia dá visibilidade para a urgência de alinhar agricultura e clima. É o momento de reconhecer os sistemas alimentares como eixo estratégico do combate à crise climática e assumir compromissos que fortaleçam a agricultura familiar, reduzam o uso de agrotóxicos, incentivem dietas mais sustentáveis e assegurem uma transição justa. 

A força para essa transformação não virá apenas das negociações oficiais. Ao longo de décadas, a sociedade civil brasileira acumulou capacidade de propor políticas e disputar modelos. Foi assim com o programa de cisternas, com a inclusão de alimentos agroecológicos na merenda escolar e com os sistemas de certificação participativa. Essas conquistas são prova de que, quando organizada, a sociedade civil é capaz de produzir alternativas reais e disputar o rumo do desenvolvimento.

 


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Por Opinião
postado em 08/10/2025 06:00
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