
Em um trecho do livro que estou lendo, a personagem fala do desejo de que os filhos jamais crescessem. Ela reflete sobre como as crianças passam os dias se divertindo, elaborando mundos mágicos, sem as aflições de adultos, e, à noite, se aninham em suas camas à espera do boa-noite da mãe para dormirem. Uma vida leve, de bem-estar e segurança. "Eles nunca serão tão felizes como agora", diz. Fiquei pensando em como isso deveria ser uma verdade para todos os meninos e meninas: uma infância realmente alegre. E em como está tão absurdamente longe da realidade.
Para um sem-número de crianças, a infância significa sofrimento; a casa, um local de tortura. Vulneráveis, ficam à mercê de múltiplas violências, porque é no lar que os abusos — físicos, psicológicos, sexuais e tantos outros — são cometidos, na imensa maioria das vezes. Os algozes, justamente quem deveria protegê-las: pais, mães, padrastos, madrastas, avós, tios, irmãos.
- Leia também: Saúde mental: mais demanda e resposta fragmentada
Em muitos casos, os maus-tratos são tantos e tamanhos, que elas sucumbem. Segundo o Atlas da Violência, divulgado neste ano, de 2013 a 2023, foram assassinados 2.124 meninos e meninas de 0 a 4 anos e 6.480, de 5 a 14 anos.
O levantamento ainda mostrou que os registros de violência física contra vítimas de 0 a 4 anos aumentaram 52,2% de 2022 a 2023. Crianças também são a maioria dos alvos de violência sexual (65,2%) e psicológica (54,8%). As que sobrevivem às agressões carregam traumas devastadores pelo resto da vida.
Apesar da gravidade da situação — mostrada nesse estudo e em diversos outros rotineiramente publicados —, a violência doméstica não é tratada com a urgência e a seriedade que deveria. Este país segue negligenciando cruelmente sua obrigação de garantir a proteção de crianças e adolescentes. Não há enfrentamento na intensidade que a dimensão da barbárie requer, faltam políticas públicas efetivas, programas de prevenção e cuidado.
A extrema vulnerabilidade de meninos e meninas demanda ação de todos nós — Estado, sociedade e família. É preciso sair ao socorro de quem não tem condições de se defender sozinho, de quem sofre em silêncio. Todos os dias têm de ser das crianças, com "absoluta prioridade" para os direitos delas, como ordena a Constituição.
Enquanto fecharmos os olhos para tanto sofrimento, o lar seguirá sendo um lugar de medo e dor para uma infinidade de crianças, um lugar onde infâncias são destruídas.
Opinião
Opinião
Opinião