
SERGIO DAYRELL PORTO, professor emérito daUniversidade de Brasília
Fiquei sabendo do falecimento da doutora Enila Chagas, por duas mensagens no Whats App: uma mensagem escrita de Tania Martins, nossa podóloga, e um telefonema de sua filha, Helena Chagas, jornalista, minha ex-aluna na UnB. Maio de 2023, há dois anos e meio, foi a última vez que fui à casa da doutora Enila, pois os seus atendimentos estavam sendo feitos em sua casa, no escritório de seu marido, o jornalista e professor Carlos Chagas, falecido há 8 anos. Gostava de ir lá, na QL 8 do Lago Sul, bem perto do conjunto Gilberto Salomão, e a Helena me repetia que eu fui o último cliente de sua mãe. Eu ainda acrescentava, talvez o mais longevo. Ali, o estacionamento era fácil, ou então meu filho André ou meu neto me levavam e buscavam. Meu neto Matheus, ao me esperar, dizia que as consultas demoravam muito, eu lhe respondia que não se faz terapia com sofreguidão. Antes disso, as consultas eram num edifício comercial da QI 3 do Lago Sul, onde o atendimento nos oferecia amplos espaços de estacionamento. Nos meus registros do celular, em setembro de 2020, há 5 anos, o atendimento da doutora. Enila se fazia ali, num prédio onde funcionava embaixo o laboratório Pasteur.
- Leia também: Uma ausência injustificada
Mas os meus primeiros contatos como cliente da doutora Enila foram num dos edifícios próximos ao Prontonorte ( hoje, Hospital Santa Lúcia da Asa Norte) de 1985 para cá, portanto há 40 anos. Eu e algumas professoras da UnB frequentávamos o seu consultório. Um detalhe sem importância, lutávamos contra nossos ouvidos, para não escutarmos os diálogos que lá se davam. O problema acabou sendo resolvido com uma música ambiente.
Por todo esse histórico, sinto-me convidado a produzir esta narrativa temporal e presencial da vida terapêutica da doutora Enila Chagas, que atuava na linha da gestalt terapia, que, no meu entender, obedecia a uma corrente terapêutica alemã, que se aproveitando das formas arredondadas, melhor, compreensivas, da ocupação de espaços e tempos, possibilita aos psicólogos e clientes penetrarem no aceiro de blindagem do próprio mal-estar. A doutora Enila não cuidava de seus clientes como portadores de uma doença a ser curada, mas como seres humanos compreendidos em determinadas autopercepções temporais e espaciais. Ela se interessava pelo desenvolvimento de cada cliente, em que seus níveis de autocompreensão pudessem ser alargados, produzindo autoconhecimento e alívio dos problemas de suas vidas. Este método terapêutico buscava o cliente em sua totalidade, vivendo seus problemas atuais, em circunstâncias do momento.
- Leia também: A tempestade que podemos evitar
Sempre comentava com as pessoas de minha convivência que a doutora Enila era uma terapeuta inteligente e perspicaz, capaz de captar em detalhes o que atormentava seus clientes. As suas análises eram bem pertinentes. No meu caso pessoal, vindo de um curso de Phd na Mc.Gill Universty, Montreal, Canadá, pela intensidade das leituras e pesquisas, podia falar que sofria da 'síndrome do doutorado', em que as pessoas ficam trancadas em seus laboratórios e bibliotecas, ressentindo-se bastante do contato externo, com outras pessoas.
Ao se expor fora deste casulo, sofria desse mal do doutorado, comportando-me com medo da vida lá fora. Algo parecido com quando saí do Convento dos Dominicanos, em que, após ter vivido alguns anos em comunidade fechada, as coisas que adivinham aqui fora — dizíamos assim, metiam medo. Mais tarde, esses medos puderam ser identificados pela doutora. Enila como síndrome do pânico. E ela me livrou disso e prestou a mim um bem enorme. Melhor dizendo, ela possibilitou-me que me afastasse desta síndrome, usando meus próprios recursos cognitivos e comportamentais. Ela estando no Brasil, eu em Paris, cursando o pós-doutorado, ela encontrava meios de cuidar de seu paciente, mesmo a distância.
- Leia também: Confiar e desconfiar
Por fim, extrapolando os rigores das metodologias terapêuticas, as pessoas diziam que a doutora Enila e eu nos tornamos amigos. Ela me recebia em sua casa, dizendo "amigo" — como tem passado, amigo? A gente também conversava sobre a obra do filósofo e hermenêuta francês, Paul Ricoeur. Um dos livros comentados fora "Le temps et l'oubli" — O tempo e o esquecimento, e comentávamos que a gente esquecia de algumas coisas para criar espaços para nós no lembrarmos de outras.
Opinião
Opinião
Opinião