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O desafio global da resistência aos antimicrobianos

No Brasil, dados do estudo Global Burden of Disease mostram que, em 2021, 31,7 mil mortes foram atribuídas diretamente à resistência antimicrobiana, enquanto 130 mil tiveram relação indireta com o problema

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 7,7 milhões de pessoas morreram em 2019 em decorrência de infecções bacterianas -  (crédito: Reprodução da The University of Medicine and Dentistry of New Jersey)
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 7,7 milhões de pessoas morreram em 2019 em decorrência de infecções bacterianas - (crédito: Reprodução da The University of Medicine and Dentistry of New Jersey)

Por David Uip, médico, infectologista, reitor do Centro Universitário FMABC, membro titular da Academia de Medicina de São Paulo — A resistência de bactérias e fungos aos medicamentos antimicrobianos é hoje reconhecida como uma das maiores ameaças à saúde pública global. O avanço desse fenômeno preocupa autoridades sanitárias e especialistas em todo o mundo, pois compromete a eficácia de tratamentos antes seguros e coloca em risco procedimentos médicos essenciais, como cirurgias, partos, quimioterapia e transplantes.

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De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 7,7 milhões de pessoas morreram em 2019 em decorrência de infecções bacterianas. Desses óbitos, 4,95 milhões estavam associados à resistência a antibióticos, e 1,27 milhão foram diretamente causados por microrganismos resistentes. No Brasil, dados do estudo Global Burden of Disease mostram que, em 2021, 31,7 mil mortes foram atribuídas diretamente à resistência antimicrobiana, enquanto 130 mil tiveram relação indireta com o problema. Os números traduzem uma epidemia silenciosa que ameaça se tornar uma crise de proporções semelhantes às das grandes pandemias.

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A resistência ocorre quando bactérias, vírus, fungos ou parasitas sofrem mutações e passam a não responder aos medicamentos disponíveis. Esse processo é acelerado pelo uso inadequado de antibióticos, como a automedicação, o abandono precoce do tratamento ou o uso em doses incorretas, também pelo descarte inadequado de medicamentos e pelo uso indiscriminado de antimicrobianos em animais e na agricultura. Essa combinação cria condições ideais para o surgimento e a disseminação de cepas cada vez mais resistentes, que circulam entre pessoas, animais e o meio ambiente.

Embora o problema seja global, os países de baixa e média renda são os mais afetados. A falta de acesso à água potável e saneamento básico, somada a sistemas de saúde frágeis, dificulta o controle de infecções e o uso racional de medicamentos. Nesse contexto, o ciclo de resistência se intensifica: mais infecções levam a maior consumo de antibióticos, e o uso excessivo favorece o surgimento de novas cepas resistentes.

O impacto vai muito além das doenças infecciosas. Sem antibióticos eficazes, a medicina moderna corre o risco de retroceder décadas. Procedimentos como partos cesarianos, cirurgias cardíacas e tratamentos oncológicos dependem da existência de medicamentos capazes de prevenir ou tratar infecções. Sem eles, até uma pneumonia simples ou uma infecção urinária podem voltar a ser potencialmente fatais.

Para enfrentar o problema, a OMS defende uma abordagem integrada baseada no conceito de "Uma Só Saúde" (One Health), que reconhece a interconexão entre a saúde humana, animal e ambiental. O combate à resistência antimicrobiana exige esforços coordenados entre governos, instituições de pesquisa, profissionais de saúde, indústria farmacêutica e sociedade civil. É preciso investir em políticas públicas de prevenção, ampliar o acesso à saúde, aprimorar o diagnóstico laboratorial, garantir a prescrição responsável e fortalecer os sistemas de vigilância epidemiológica.

Segundo o Banco Mundial, seriam necessários cerca de US$ 9 bilhões por ano para conter o avanço da resistência em países de baixa e média renda. O investimento deve priorizar o desenvolvimento de novos antibióticos, a ampliação de programas de controle de infecções, o estímulo à pesquisa científica e a regulação rigorosa do uso de antimicrobianos em humanos e animais.

As projeções são alarmantes: se nenhuma ação efetiva for adotada, até 2050, as infecções resistentes poderão causar mais mortes do que o câncer e as doenças cardiovasculares combinadas, além de provocar um impacto econômico estimado em trilhões de dólares, com queda na produtividade e sobrecarga nos sistemas de saúde.

No Brasil, é fundamental fortalecer o Plano Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos (PAN-BR), alinhado às diretrizes da OMS, e ampliar parcerias público-privadas voltadas à pesquisa e inovação. A indústria farmacêutica nacional tem capacidade técnica e científica para desempenhar papel estratégico, desde que receba apoio de políticas públicas consistentes e incentivos à inovação.

A resistência antimicrobiana é uma ameaça silenciosa, mas não inevitável. Enfrentá-la exige compromisso político, investimento continuado e conscientização coletiva. O tempo de agir é agora, antes que infecções tratáveis voltem a ser sentenças de morte.

 

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Por Opinião
postado em 19/10/2025 06:00 / atualizado em 21/10/2025 12:57
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