Artigo

Para além do espelho branco: reflexões sobre como nos vemos e saúde mental

Autoimagem é a representação mental que uma pessoa tem de si, tanto fisicamente quanto mental e socialmente. É interessante notar que a autoimagem de uma pessoa tem tantas faces quantos os diferentes contextos onde ela vive

Opiniao 1810 -  (crédito: Caio Gomez)
Opiniao 1810 - (crédito: Caio Gomez)

IRAPOAN NOGUEIRA FILHO ALFORD, psicólogo, cientista, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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Neste texto, explicarei a você sobre como há diferentes maneiras de como nos vemos, como tudo isso se relaciona com nossa saúde mental... e como o racismo impacta essas diferentes maneiras. Sou psicólogo e professor, e interessa-me compartilhar aqui conceitos da psicologia que podem ser úteis para o exercício do autocuidado. 

A nossa saúde mental é influenciada pelas marcas que a sociedade deixa em nossos corpos e mentes. Em uma sociedade em que o "branco" é tido como norma de existir, a população negra é ensinada a se olhar a partir de uma ótica brancocêntrica: aprende-se que a beleza, a inteligência e a competência são brancas. E, por muitas vezes, a mídia retrata pessoas negras a partir de retratos racistas. 

Esse conjunto de práticas e discursos racistas em nosso meio cultural impacta não apenas como nós nos vemos, mas também os tipos de sonhos e de planos de vida que temos, bem como os modos como sonhamos e planejamos. Há muitos entre nós com dificuldade de perceber a própria beleza, a própria competência e inteligência, as suas capacidades. 

Em conversas cotidianas, fala-se muito sobre autoestima. Mas eu gostaria de apresentar aqui dois outros fenômenos psicológicos: a autoimagem e o autoconceito. Esses fenômenos se interconectam. Uma autoimagem distorcida pode abalar a autoestima. Um autoconceito fragilizado pode ter o mesmo efeito. Quando se é negro em uma sociedade que, historicamente, nos nega valor, esses processos ganham contornos ainda mais profundos. 

Autoimagem é a representação mental que uma pessoa tem de si, tanto fisicamente quanto mental e socialmente. É interessante notar que a autoimagem de uma pessoa tem tantas faces quantos os diferentes contextos onde ela vive. Você pode ter uma imagem positiva de você enquanto amigo(a), mas negativa como cônjuge. Você pode se ver como atraente para uma roda social de amigos, mas não se ver como atraente para uma conexão amorosa. Nós crescemos sendo alimentados com modelos brancocêntricos de beleza, comportamento e expressão. A negritude é tão afastada desses modelos brancocêntricos que chamam nosso cabelo crespo de cabelo "duro" ou "ruim". 

Uma autoimagem distorcida abala a autoestima, bem como impacta diretamente a formação do autoconceito. Pessoas que passaram por transição capilar sabem exatamente do que estou falando. O autoconceito consiste na compreensão mais ampla que o indivíduo tem de si mesmo, incluindo julgamentos cognitivos e afetivos sobre quem é. O autoconceito é aprendido ao longo da vida e é influenciado pelas interações sociais. Ele pode não refletir necessariamente a realidade, podendo haver discrepância entre o autoconceito e a autoestima, no que diz respeito à avaliação subjetiva que o indivíduo faz de seu próprio valor e mérito. 

Por exemplo, como professor, já vi brilhantes estudantes negros que não reconheciam a própria inteligência, mas tinham uma boa autoestima, tendo para si o conceito de que a sua função é a de ser o/a humorista do grupo. Ou pessoas negras que acham que estudar é algo muito complicado para elas. A constante exposição a narrativas desvalorizadoras sobre a negritude pode fazer com que internalizemos crenças negativas sobre nossas capacidades, inteligência e valor social. Esse processo de internalização dessas normas é conhecido como racismo internalizado, criando uma percepção distorcida sobre quem somos e sobre o que podemos alcançar. 

Mas não se trata somente de desesperança. Nós temos outros espelhos, outros referenciais que estão conosco desde que nascemos: a herança cultural que é transmitida de geração a geração, compondo costumes e espaços sociais negros. Esses diferentes elementos compõem não apenas modos de socializar, mas também são dispositivos de aprendizagem. Aprender sobre negritude não é somente aprender nossa história: é aprender a como cuidar do seu cabelo, selecionar uma roupa que fique bem no seu tom de pele... É, também, aprender a criar outros tipos de sonhos de vida, não orientados pelo discurso que sociedade e mídia tecem sobre você.  

Assim, praticar o simplesmente estar entre pessoas pretas nos possibilita nos perceber de outra forma. Esse "existir entre pretos" torna mais fácil encontrar pistas, conhecimentos e caminhos para a construção de uma percepção de si mais potente... É realista. Fortalecer a autoestima, a autoimagem e o autoconceito é mais do que um caminho para o bem-estar — é um ato político e coletivo.

 


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postado em 18/10/2025 06:00
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