ARTIGO

A fabricação do "narcoterrorista latino" e a garantia de hegemonia dos EUA

Se a chamada Guerra ao Terror, de Bush, não impactou a América Latina diretamente, com Trump, a narrativa da Guerra às Drogas encontra o seu cerne no nosso continente

PRI-0511-OPINI -  (crédito: maurenilson)
PRI-0511-OPINI - (crédito: maurenilson)

NATALIA FINGERMANN, professora de relações internacionais da ESPM; e RAFAEL IORIS, professor de história da América Latina da University of Denver

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Nem é necessário prestar muita atenção para perceber que o mundo atravessa hoje mudanças históricas. Se, até recentemente, entendíamos estar em um ordenamento global centrado na hegemonia dos EUA, a ascensão econômica e geopolítica chinesa redefine, a cada dia, o peso e a capacidade relativa de cada ator no cenário internacional. Na América Latina, essa mudança tem alterado significativamente as relações entre a região e a Casa Branca. 

Desde que Donald Trump assumiu a presidência, observamos uma política externa que aprova o manu militari no hemisfério. Os crescentes ataques às embarcações de cartéis venezuelanos em águas internacionais e o envio de um navio de guerra à Trinidad e Tobago indicam que os EUA devem ir além das operações clássicas da CIA para impor sua vontade regional. No caso da Venezuela, o risco de uma ação militar terrestre intensifica-se gradativamente. Entretanto, ainda hoje Trump não dispõe de apoio da população norte-americana para deslocar-se militarmente ao país. A pesquisa nacional do YouGov, realizada em setembro de 2025, indica que 16% dos norte-americanos apóiam uma intervenção direta dos EUA no território venezuelano, enquanto 35% aprovam o envio de navios militares. 

Com o objetivo de ampliar o apoio às intervenções, Trump tem se valido de uma reativação da narrativa binária, utilizada por George W. Bush nos anos 2000. Lembremos que, após o 11 de Setembro, Bush articulou a imagem do terrorismo internacional como uma ameaça permanente, contra a qual não existiria alternativa a não ser uma ação militar extrema.  Mas se a chamada Guerra ao Terror não impactou a América Latina diretamente, com Trump, a narrativa da Guerra às Drogas encontra o seu cerne no nosso continente. Desde fevereiro de 2025, o Departamento de Estado tem incluído cartéis de narcotráfico na lista de Organizações Terroristas Estrangeiras. 

Essa alteração no significado dos cartéis de narcotráfico é importante para consolidar o apoio político interno. Judith Butler, em seu livro Frames of war, destaca como o primeiro passo para uma guerra não é uma bala ou uma bomba, mas, sim, o enquadramento midiático criado em torno do valor da vida. Ao inserir os cartéis latino-americanos na lista de Organizações Terroristas, os EUA redefine-los como indivíduos situados fora do quadro de valorização da vida, passíveis, portanto, à eliminação sumária — tal como foi visto antes a imagem do terrorista islâmico. 

Essa desumanização simbólica fornece "legitimidade" aos ataques do governo Trump nos mares do Caribe, sendo encontrado o paralelo histórico com a política externa George W. Bush na própria fala do secretário de Guerra do governo, Pete Hegseth,  que diz: "Assim como a Al-Qaeda travou guerra contra nossa pátria, esses cartéis estão travando guerra contra nossa fronteira e nosso povo; por isso, não haverá refúgio nem perdão — apenas justiça." 

A lógica maniqueísta que busca justificar a eliminação do oponente fora das regras formais do direito internacional é extremamente perigosa para a estabilidade política da região, inclusive para o Brasil. Sabemos quais foram as conseqüências que a erosão das normativas multilaterais, o colapso das instâncias diplomáticas regionais e a designação de todos mulçumanos como potenciais terroristas representou ao Oriente Médio no início deste século, e, ao que tudo indica, Trump adota a mesma lógica de política externa para a América Latina. 

Se o simbolismo do terror em torno dos narcotraficantes latinos se consolidar da mesma maneira que vimos em relação ao islamismo, é possível que Trump consiga angariar o apoio necessário para invadir a Venezuela, com impactos nefastos, inclusive nos EUA. Pois a guerra às drogas pela fabricação do "narcoterrorista latino" significa também um aumento da estigmatização e perseguição aos imigrantes latinos que residem atualmente nos Estados Unidos.

Para evitar que esse processo de securitização do combate às drogas desumanize populações inteiras e desestabilize ainda mais o continente, é preciso que as lideranças latino-americanas reafirmem a importância da soberania nacional e restabeleçam os mecanismos de solução pacífica regional, resgatando junto à gestão de Donald Trump uma política de "bom vizinho", ou pelo menos a de um vizinho de caráter menos imperial.  

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Por Opinião
postado em 05/11/2025 06:03
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