Artigo

Brifado

É oportuno registrar que, desde o Brasil colônia, ainda que de maneira informal e não especializada, a função de manter a ordem foi viabilizada a negros, pois esse dever era visto pelas elites como um trabalho vil.

Mais corpos negros, sejam policiais ou civis, continuarão tombando. Tudo isso é consequência da omissão e leniência estatal. -  (crédito: MAURO PIMENTEL / AFP)
Mais corpos negros, sejam policiais ou civis, continuarão tombando. Tudo isso é consequência da omissão e leniência estatal. - (crédito: MAURO PIMENTEL / AFP)

RICARDO NOGUEIRA VIANAprofessor de educação física, mestrando em direitos humanos e segurança pública (UFG). Delegado chefe da 35ª DP

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

Explica-se o motivo, expõe-se a missão e, como desfecho, utiliza-se uma frase de efeito: que Deus esteja conosco e um bom retorno a todos e todas. Não se trata de um culto ou uma palestra de autoajuda, mas de uma operação policial. Essa etapa refere-se ao "briefing", termo utilizado para nomear uma reunião rápida e objetiva, em que o responsável pela operação transmite as informações necessárias aos policiais envolvidos. O que a sociedade recebe, nem sempre corresponde ao que foi planejado. O embate entre polícia e criminalidade é imprevisível, conflituoso, e, em certos estados brasileiros, por vezes, beligerante.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Nesse teatro de horrores, há personagens bem definidos. Embora não devessem estar sozinhos nessa responsabilidade, a sociedade enxerga três atores. A polícia é a instituição autorizada pelo Estado a usar a força, formada por pessoas que, sob o colete, carregam anseios e frustrações econômicas e afetivas. Do outro lado, a criminalidade organizada se mostra armada, fraccionada e inserida em nichos periféricos, convivendo com uma população, majoritariamente negra, que foi empurrada para essas regiões. Entre esses dois polos, ergue-se um muro composto por ONGs, especialistas, comentaristas, políticos e influenciadores, que giram seus canhões opinativos, ora para os uniformes, ora para os criminosos.

É oportuno registrar que, desde o Brasil colônia, ainda que de maneira informal e não especializada, a função de manter a ordem foi viabilizada a negros, pois esse dever era visto pelas elites como um trabalho vil. Assim foi com os feitores, capitães do mato, Terço dos Henriques, na Intendência Geral e na Guarda Real. Todos encarregados de conter escravizados, depois, negros libertos e seus descendentes. Laurentino Gomes (2019) relata que, até nos navios negreiros, outros negros desempenhavam papéis de contenção de cativos. Era uma forma de aceitação e, principalmente, sobrevivência. A partir do desembarque em terras de Pindorama, estruturou-se, de modo estratégico, uma guerra de negros contra negros: os que se aproximaram da Casa Grande e os que continuaram subjugados.

Assim, as forças de segurança sempre foram caminhos de mobilidade social para os afrodescendentes. Contudo, é necessário afirmar que esse acesso à classe média, via de regra, se dá em áreas operacionais, na linha de frente, em contato direto com a população. O oficialato das polícias militares, assim como os cargos de delegados de polícia, ainda são espaços embranquecidos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2024, 50,5% dos policiais militares e civis do Brasil eram negros; dos mortos em serviço, 65,4% eram negros. Por outro lado, 82% das mortes provocadas por intervenções policiais são de pessoas negras, em sua maior parte jovens entre 18 e 29 anos. É sangue negro dos dois lados.

No outro extremo, estão os criminosos. Daí surge a máxima: "Bandido bom é bandido morto" (entenda-se bandido negro). Entretanto, é preciso pensar criticamente sobre o que significa ser "bandido" para uma sociedade racista, sob o ponto de vista jurídico, econômico e social. No Brasil, há crimes violentos, na sua maioria sustentados pelo narcotráfico. É um fato. Porém, essa mesma sociedade convive também com crimes de colarinho branco, delitos supostamente não violentos, praticados por indivíduos com status elevado. O próprio termo "colarinho branco" já define quem são seus sujeitos ativos. Estes são venerados por parte da população, e a cadeia é uma exceção. Já no caso da criminalidade periférica, formada principalmente por negros, chancela-se o extermínio.

É diante desse quadro que mais corpos negros, sejam policiais ou civis, continuarão tombando. Tudo isso é consequência da omissão e leniência estatal. Sem soluções objetivas, claras e concisas, precisamos reconhecer as causas desse cenário. O Estado brasileiro foi conivente com a escravidão e omisso na abolição, pois não ofereceu ações afirmativas para a integração dos afrodescendentes: não concedeu escola, terra, nem subsídio, todos dados, posteriormente, a imigrantes. Foi omisso quando a Constituição de 1891 e nas subsequentes, previu a igualdade formal e abstrata que nunca alcançou todos de maneira igualitária. O erro persiste, quando o Estado finge não reconhecer o racismo estrutural e não conduz políticas públicas ao povo negro, o qual sempre margeou esta sociedade que o discrimina. Enfim, aguardemos o próximo briefing. Que Deus esteja conosco e dê um bom retorno a quem conseguir.

 

  • Google Discover Icon
Por Opinião
postado em 04/11/2025 05:00
x