ARTIGO

A guerra é branca. A luta, negra: marchando por um armistício para o Brasil

Enquanto nos gabinetes se celebra a política da morte, nós, mulheres negras, seguimos apostando na vida. Marchamos exaltando a política real da vida, da qual somos protagonistas absolutas.

PRI-2411-OPINI -  (crédito: Maurenilson)
PRI-2411-OPINI - (crédito: Maurenilson)

Ana Flauzina, professora da Faculdade de Educação e do programa de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia, tem mestrado em direito (UnB) e doutorado em direito (American University Washington College of Law) 

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É do fundo da alma, do canto do peito em que pulsa verdade, amor e compromisso, que deságuam essas palavras. Sei que de mim se esperam as linhas retas, as respostas prontas, as sentenças definitivas. Mas não posso dar o que não tenho. Desde o dia 28 de outubro, estou mergulhada no silêncio, tentando achar um beco de saída para esse labirinto sem mapa.

Não que haja novidade em termos de tragédia. Afinal, em que rincão do Brasil o rio do sangue negro não jorra? Mas houve ali a assinatura pública de um projeto de país que celebra a morte e nos convoca a aderir ao terror. 

Falo desse mundo criado pelos homens e para os homens. Esse mundo masculino e, indiscutivelmente, branco, que gestou a tragédia brasileira e, agora, se arvora a apresentar soluções para o colapso. São homens engravatados determinando operações — muitos expostos em CPIs das milícias e das armas; homens fardados executando ordens; homens armados coordenando facções; homens togados chancelando matanças. Essa estética da violência é a disputa de um grupo de homens sobre outros — e de todos eles sobre nós.

Neste mundo, a masculinidade é semantizada como violência. E a virilidade armada, sabemos, pertence à mesma constelação dos red pills que naturalizam a predação, dos videogames que transformam a morte em passatempo e das músicas que exaltam o domínio masculino sobre as mulheres. Trata-se de um continuum de violência, que vai da forma como meninos aprendem a desejar até a maneira como o Estado define suas políticas de segurança. O resultado está nos números: segundo o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher é vítima de feminicídio a cada seis horas. 63,6% são negras. Armas de fogo são usadas em quase um quarto dos casos.

As respostas oferecidas a esse quadro são tão perversas quanto ineficazes. De um lado, a autodefesa individual, com sprays de pimenta vendidos como símbolo de empoderamento; de outro, a cumplicidade das instituições que tomam como referência modelos internacionais com cheiro de testosterona, como o de El Salvador.

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Enquanto nos gabinetes se celebra a política da morte, nós, mulheres negras, seguimos apostando na vida. Apesar de excluídas das instâncias decisórias, produzimos há décadas propostas ignoradas pelo Estado, especialmente no âmbito da  segurança pública.

De imediato, propomos a pavimentação de um caminho de volta para os jovens envolvidos no tráfico. A pesquisa Raio-X da Vida Real confirma o que já sabíamos: 58% sairiam se tivessem uma alternativa real. Muitos já circulam entre atividades lícitas e ilícitas, fazendo bicos e tentando construir alguma estabilidade em meio ao caos. Cabe pontuar que são filhos da pobreza: para 29% dos entrevistados, o principal motivo para gostar da escola era a merenda. Quando perguntados por que sairiam, respondem com a lógica da sobrevivência: emprego formal, chance de abrir um pequeno negócio, trabalho com flexibilidade ou possibilidade de constituir família explicam 57% das motivações para abandonar o tráfico.  

Esse caminho exige um armistício efetivo: cessar-fogo mediado por comunidades e lideranças femininas; possibilidade segura de devolver armas; interrupção da produção clandestina e políticas de apagamento progressivo da ficha criminal, num processo que substitua as políticas de punição estéreis por um projeto de responsabilização social dos indivíduos. Medellín mostrou que não é utopia: anistia parcial, reintegração e presença urbana reconstruíram uma cidade que, nos anos 1980 e 1990, ostentou uma das maiores taxas de homicídios do mundo. 

Também é urgente reduzir as armas em circulação. E isso, obviamente, não se faz revistando mochilas de adolescentes negros, mas atuando onde o poder opera: fronteiras por onde entram fuzis, portos que liberam carregamentos, clubes de tiro e CACs usados como fachada, arsenais das forças de segurança que abastecem milícias. Ao se controlar as armas, controla-se a violência que macula tanto os homens na esfera pública quanto as mulheres, no silêncio do privado.

Amanhã, ao tomarmos as ruas de Brasília, marchamos para impedir que a segurança pública seja patenteada como guerra. Marchamos exaltando a política real da vida, da qual somos protagonistas absolutas: donas da economia do cuidado, da sobrevivência e da intelectualidade crítica radical.

Fato é que a transformação efetiva do Brasil só será possível com as mulheres negras na vanguarda das decisões políticas. Abrir mão de nós é abrir mão das agentes que acumulam mediação, gerenciamento de conflitos e horizonte de conciliação. Pelos últimos movimentos no Planalto Central, esse reconhecimento ainda está longe de ser efetuado, considerando a nomeação de um homem branco para o Supremo Tribunal Federal em pleno Dia da Consciência Negra.

Apesar de muitos quilômetros históricos separarem a política da vida da política de gabinetes, o diagnóstico continua inescapável: a paz — que não se consolida com a ausência de conflito, mas com a presença de justiça — é um substantivo feminino negro. E outro caminho para o país só será possível quando se abrir, de fato, um caminho para nós.

 

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Por Opinião
postado em 24/11/2025 06:01
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