Renata Medeiros — mestre em ciência política e relações internacionais, é psicanalista
Sinto uma satisfação serena — e até um certo alívio — por não experimentar aquele prazer profundo, de contornos vingativos, diante da prisão justa e merecida de Jair Bolsonaro, que mentiu, levantou dúvida contra o árbitro da democracia, a Justiça Eleitoral, fez acusações infundadas, sem a mínima prova, buscando o retorno ao sistema de fraudes das cédulas de papel, mediante o descrédito da urna eletrônica.
- Leia também: Jair Bolsonaro é preso pela Polícia Federal
Há quem celebre, há quem sinta euforia moral. Em mim, algo mais sólido prevalece: o senso de justiça. Quando a lei alcança alguém que dela se desviou, cumpre-se um princípio civilizatório que está acima de desejos pessoais de revanche.
Sempre acreditei no binômio causa e consequência. Se alguém, seja quem for, decide se colocar à margem das normas que regem a vida democrática, deve também se submeter às consequências previstas por essas mesmas normas. Não há excepcionalidade possível quando se trata de responsabilidade. A lei existe para ser aplicada, sobretudo a quem fez da impunidade um modo de operar na vida pública.
Bolsonaro, diferentemente da imagem de mito que projetou sobre si e que tantos aceitaram, nunca esteve acima do bem e do mal. Essa autoimagem parece nascer justamente daquilo que mais tentou esconder: fragilidades, ressentimentos e a necessidade contínua de provar uma grandeza que não se sustenta. A gente sempre acaba se convencendo do que tenta convencer o outro.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
A necessidade dele de transgredir — não como gesto revolucionário, mas como subversão da hierarquia para reafirmar um poder que não possuía — acompanha sua trajetória desde o Exército. Ali, onde o respeito às ordens deveria ser estrutural, Bolsonaro buscou construir sua narrativa de força por meio da insubordinação. Tido por um mau militar, segundo o General Geisel, está nas memórias desse ilustre militar, ditadas à Fundação Getúlio Vargas. Não se sabe como e por que militares de alta patente, até oficiais generais aposentados e um almirante se associaram a ele na trama de descumprir a lei e a Constituição.
Sua potência sexual, tão repetidamente exibida, era apenas mais um instrumento de fabricação de convencimento onde só havia mérito próprio e, possivelmente, enganoso. Ridiculamente, proclamava-se imbrochavel, um super-homem. No final, entretanto, fazendo-se — verdade ou mais uma mentira — mortificado por moléstias várias, com medo de ser preso na Papuda.
No parlamento, depois que excluído do Exército, encontrou na extrema-direita um terreno fértil para se distinguir. Não por qualidades políticas, mas pela retórica agressiva e pelo discurso autoritário que, aos poucos, o levou acreditar que ali residia seu verdadeiro papel histórico. Fazendo apologia da tortura, afirmando que gostaria de fuzilar o presidente da República Fernando Henrique Cardoso, mostrou o seu caráter corrompido.
Tudo, na verdade, não passou de um movimento calculado, ainda que alimentado por convicções tortas. O tiro foi certeiro — para os propósitos dele. Felizmente, não bem-sucedidos, porque vinham de encontro aos propósitos da sociedade brasileira.
Mas certeiro também foi o caminho que o trouxe até à prisão. Ao contrário do que supôs, não é possível viver indefinidamente na transgressão institucional e esperar imunidade. A lei, quando funciona, alcança mesmo aqueles que se imaginam inalcançáveis. Assim deve ser numa democracia, assim há de ser, sempre, no Brasil. Serve como lição para os aprendizes de governos autoritários, para os governos que fazem pouco da lei, que fazem pouco da moral, sobretudo da ética.
É por isso que não sinto prazer vingativo. Sinto a satisfação tranquila de ver a justiça prevalecer. O que se cumpre não é uma vitória pessoal minha, nem de quem se opõe politicamente a Bolsonaro. Nem do governo de plantão. É uma vitória da própria ideia de democracia — essa que ele tantas vezes tentou subverter, talvez por temer que um dia ela também o julgasse.
Esse dia chegou. Por isso, sinto paz — não alegria, jamais prazer. Quando a justiça se faz, a vingança perde qualquer sentido. A consequência fala por si.
Saiba Mais
