
Patrícia Villela Marino — advogada, presidente do Instituto Humanitas360 e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
Há alguns anos, venho repetindo: no Brasil, não há pena de prisão perpétua, mas há a perpetuidade da pena. É preciso repetir, insistir, cunhar essa ideia, até que a sociedade compreenda o quanto ela é verdadeira — e perigosa.
Na esteira do populismo penal, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, defendeu recentemente a adoção da prisão perpétua no Brasil. "Não acho nenhum absurdo", disse, propondo, inclusive, um referendo em 2026 para modificar a Constituição Federal. Fez isso elogiando o presidente de El Salvador, Nayib Bukele — símbolo do autoritarismo penal contemporâneo, acusado de sistemáticas violações de direitos humanos em nome da "segurança pública".
Mas, sejamos honestos: a prisão perpétua já existe informalmente no Brasil. Ela acontece quando se impõem a pena de multa impagável, após o cumprimento da pena de privação de liberdade; quando se alimentam estigmas; quando se nega à pessoa condenada a oportunidade de estudar e trabalhar para reconstruir sua vida. Essa perpetuidade silenciosa agrava-se com políticas que apenas empilham corpos, sob a desinformação falaciosa de que aumentar a pena traz paz. No outro extremo da pirâmide social, há penas que são reduzidas de maneira ultrajante, pelo abuso do poder financeiro utilizado para soltar pessoas ricas por meio de habeas corpus, enquanto os mais pobres seguem apodrecendo nas cadeias mesmo com penas já cumpridas.
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Se o aumento de pena fosse solução, seríamos um dos países mais seguros do mundo. Afinal, temos a terceira maior população carcerária do planeta. Mas a realidade é outra. Vivemos um ciclo de violência que nos exaure em todos os momentos de nossos dias. O desespero nos leva a querer medidas milagrosas, abrindo espaço para que políticos populistas assumam posições messiânicas vendendo propostas punitivistas para vingar a alma cansada da população. Isso tem nome: manipulação.
A política de "tolerância zero" que inspira vários governantes vem sendo aplicada no Brasil de forma velada. Operações letais são celebradas como necessárias apesar de sua ineficiência. Mas são as operações de inteligência, como a Carbono Oculto, que desvendam a cadeia criminosa causadora de nossa exaustão profunda. O Estado deve fazer valer seu monopólio do uso da sua força e suas capacidades de inteligência e uso da tecnologia para desvendar toda rede criminosa, da base ao topo da pirâmide. Mas é aqui no topo que os interesses são contraditórios e muitas investigações ficam inconclusivas. Banco Master e Refit são exemplos disso. Enquanto isso, a população fica sendo instigada a acreditar em promessas vazias, como um referendo para pena de morte.
O foco da segurança pública não pode ser desviado para bodes expiatórios. A obsessão por encarcerar massivamente a população mais vulnerável desvia recursos e atenção da perseguição aos grandes esquemas de corrupção e lavagem de dinheiro que corroem a sociedade. Tráfico, milícia e crime organizado se complementam numa cadeia sórdida de violência, muitas vezes de difícil compreensão para o cidadão comum. É nesse cenário que o desespero da população com a violência nas ruas abre espaço para o populismo penal da classe política. É um jogo cínico que usa a dor da população como palco para promessas que, na prática, só servem para manter o status quo da impunidade no topo e da repressão na base.
Sejamos francos: todos e todas estamos exaustos com nossos índices de violência. Mas, ainda nesse exercício de honestidade, precisamos perguntar: onde estão os verdadeiros perpetradores da violência que nos oprime? As últimas investigações revelam que muitos deles estão mais próximos do que imaginamos — não nas celas, mas nos eventos glamourosos, nas rodas de influência, nas estruturas de poder.
Seguir empilhando corpos, aumentar penas sem profunda investigação e sem políticas de reinserção só fortalecem o crime organizado. Facções criminosas nascem e se alimentam nas prisões — e, ao negar uma segunda chance a quem está prestes a sair, o Estado entrega essa pessoa ao recrutamento do crime.
A perpetuidade da pena já está entre nós. O desafio agora é impedir que ela se torne, por meio de uma canetada autoritária, ainda mais formal, ainda mais cruel — e ainda menos justa. Nossa Constituição foi feita ainda sob ares ditatoriais que não se dissipam facilmente nem rapidamente. Acabamos de viver um julgamento inédito na história do Brasil. Mudar a Constituição para nesses termos, me parece voltar a um Brasil que nunca mais precisa ser vivido.
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