ARTIGO

20 de Novembro: o dia que não passa

O 20 de Novembro é feriado que não passa. De luta para que, todo dia, surjam outros Zumbis e outras Dandaras a transformar o Brasil num país mais justo e democrático

PRI-1312-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire/CB/DA Press)
PRI-1312-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire/CB/DA Press)

André Lúcio Bentodoutor em linguística, escritor, especialista em cultura africana, desenvolve projeto de catalogação dos baobás existentes em Brasília

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Fui uma criança que via vultos na escola. O tempo todo. Mas eles gostavam mesmo de aparecer nas aulas de educação moral e cívica, uma disciplina a serviço da ditadura militar que tinha o objetivo de incutir, em nós, crianças, o nacionalismo e os chamados valores morais na visão do regime de exceção. Tinha um livro chamado Vultos da pátria, que, em suas várias versões, trazia um rol de biografias, quase todas para doutrinar as mentes de crianças e jovens do Brasil. 

A princesa Isabel estava lá também e, se não me falha a memória, na edição a que eu tinha acesso no antigo 1º grau, ela era a única "vulta" no meio de um bocado de vultos, sobretudo por causa dos seus 15 minutos de fama no dia 13 de maio de 1888, quando herda a alcunha de redentora, por ter livrado o Brasil da escravização negra. Essa fake news histórica, forjada na perspectiva colonial e racista, povoou e povoa o imaginário de muita gente e, de forma desonesta, esconde até hoje mulheres pretas e homens pretos que fizeram da abolição um processo de resistência e de luta, e não um presente dado ao povo brasileiro pela filha do imperador. 

O 20 de Novembro é um feriado que tenta reposicionar uma parte da história brasileira e da cultura do Brasil, aquela que, por muito tempo, não vimos na escola, no cinema, na televisão. Não é apenas uma data em referência a Zumbi dos Palmares. O Dia Nacional da Consciência Negra é dedicado a Dandara, Luiz Gama, André Rebouças, Carolina Maria de Jesus, Dona Ivone Lara, Milton Santos, Grande Otelo, João do Vale, Zezé Motta, Elza Soares, Machado de Assis, Clementina de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Cruz e Sousa, Anastácia, Luiza Mahin, José do Patrocínio, Mãe Menininha do Gantois, Jamelão, Cartola, Lélia Gonzalez, Dona Zica, Alcione, Lia de Itamaracá, Alaíde Costa, Abdias Nascimento, Petronilha Beatriz, Tia Ciata, Sueli Carneiro, Jackson do Pandeiro, Léa Garcia, Neusa Borges, Jorge Ben Jor, Beatriz Nascimento, Lima Barreto, Ruth de Souza, Jovelina Pérola Negra, Chico Rei, Solano Trindade, Milton Gonçalves, Gilberto Gil, Nego Bispo, Arlindo Cruz, Conceição Evaristo, Martinho da Vila, Pixinguinha, Leci Brandão, Teresa de Benguela, Milton Nascimento… e aos pretos e às pretas do dia a dia, gente do corre, do anonimato, da ladeira, da parada de ônibus às quatro da manhã. 

Gente preta que dá aula para transformar sua vida e o Brasil. Gente preta da advocacia, da engenharia, da arquitetura, da medicina, dos mestrados e dos doutorados. É o dia que homenageia o samba, a capoeira, o hip-hop, o jongo, o maracatu, o afoxé, o funk, a congada, os tambores do Olodum… É o feriado que respeita as religiões de matriz africana e a luta quilombola.

O 20 de Novembro deve nos fazer lembrar que os luxos das cortes mundiais foram construídos, em boa parte, pela escravização do nosso povo preto. É saber que, nas xícaras ornadas com detalhes em ouro, tinha chibata e grilhão. Que os chazinhos elegantes servidos nas mesas dos impérios por aí no mundo eram uma receita de açúcar, suor e sangue do povo preto. Que a escravização por aqui não foi só um empreendimento capitalista bem-sucedido, mas, também, uma tentativa de apagamento de identidades e de matrizes culturais e religiosas. 

Já é dezembro, mas ainda é 20 de Novembro para nós. Para que não nos esqueçamos das medidas imperiais que proibiam a matrícula de crianças pretas na escola, das fazendas de "escravas parideiras", da Polícia Militar criada no Brasil para açoitar e evitar levantes contra a abolição, dos estupros de mulheres pretas que deram origem a hoje cultuada miscigenação brasileira, das crianças negras escravizadas que serviam de banquinhos para as crianças brancas se sentarem, da casa-grande e da senzala, que continuam marcando a paisagem brasileira nos opostos entre as áreas nobres e as periféricas das cidades.  

Que se denuncie a falta de negros na política, nos cargos de chefia no serviço público, nas empresas, nas editorias das televisões e dos jornais. No poder! É dia para compreendermos a revolução silenciosa feita por meio das cotas. É data para sentirmos a ancestralidade da África presente na nossa língua, no nosso jeito de falar, de sorrir, de brincar, de criar, de inventar, de compreender o mundo. É feriado que não passa. De luta para que, todo dia, surjam outros Zumbis e outras Dandaras a transformar o Brasil num país mais justo e democrático. E sem racismo.

 

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Por Opinião
postado em 13/12/2025 06:00
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