
» MARCELO QUEIROGA: Médico e ex-ministro da Saúde
O Brasil assistiu ao julgamento de Jair Bolsonaro em um procedimento que, segundo juristas independentes, não observou plenamente o devido processo legal, ao ser conduzido por uma turma do Supremo Tribunal Federal (STF) em afastamento da jurisprudência consolidada da própria Corte — como assinalado no voto do ministro Luiz Fux. Essa controvérsia, no entanto, não se limita ao plano jurídico. Ela produz efeitos concretos sobre a vida e a saúde do ex-presidente, agravando um quadro clínico que já era complexo e frágil.
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Desde a tentativa de homicídio sofrida em 2018, Jair Bolsonaro convive com sequelas permanentes. O atentado não foi um episódio isolado, mas o início de uma longa trajetória de complicações médicas. Ao longo dos anos, foi submetido a múltiplas cirurgias abdominais, com consequências bem conhecidas na prática clínica: aderências, hérnias da parede abdominal e episódios recorrentes de obstrução intestinal. No início de 2025, uma nova cirurgia tornou-se necessária para correção de aderências e hérnias incisionais, decisão tecnicamente justificada pela evolução do quadro e pelo impacto funcional relevante.
Como complicação tardia, surgiu um soluço crônico refratário ao tratamento medicamentoso. Do ponto de vista fisiopatológico, trata-se de condição relevante: o soluço persistente promove elevação repetida da pressão intra-abdominal, mecanismo que favorece a recorrência de hérnias, sobretudo em pacientes previamente operados. Além disso, o soluço contínuo associa-se a náuseas, vômitos e refluxo, aumentando o risco de broncoaspiração. Bolsonaro, inclusive, já apresentou pneumonias aspirativas, fato amplamente noticiado e clinicamente significativo, especialmente em pacientes idosos.
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Em situações raras, quando o tratamento farmacológico falha, a literatura descreve o bloqueio anestésico do nervo frênico como alternativa paliativa, de resultado incerto e geralmente temporário. Série de casos publicada em 2025 na revista Cureus, por Arun Kalava e colaboradores, reforça que se trata de medida excepcional, sem caráter curativo, empregada apenas para alívio sintomático.
A esse conjunto soma-se a presença de distúrbios do sono, condição que a medicina baseada em evidências associa a maior risco cardiovascular. Estudo clássico conduzido por Gami et al., publicado no New England Journal of Medicine, demonstrou que a apneia do sono está associada a aumento significativo do risco de morte súbita cardíaca, sobretudo durante o período noturno. De forma convergente, revisão abrangente liderada por Somers et al., publicada no The Lancet, estabeleceu associação consistente entre distúrbios respiratórios do sono, arritmias e eventos cardiovasculares fatais, reforçando a plausibilidade fisiopatológica desse risco.
Esse cenário torna-se ainda mais preocupante quando se considera que Jair Bolsonaro é idoso e apresenta doença aterosclerótica documentada nas artérias coronárias e carótidas, condição que amplia sua vulnerabilidade a eventos isquêmicos e arrítmicos, especialmente em contextos de estresse fisiológico e privação de repouso adequado.
Faço um registro indispensável: não sou o médico assistente de Jair Bolsonaro. As considerações aqui apresentadas baseiam-se exclusivamente em boletins médicos e informações divulgadas pela imprensa, analisadas à luz da medicina baseada em evidências. Não se trata de diagnóstico ou prognóstico individual, mas do reconhecimento de riscos clínicos amplamente descritos na literatura científica.
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Diante desse conjunto — idade avançada, comorbidades cardiovasculares, histórico de broncoaspiração, distúrbios do sono e soluço crônico com repercussões mecânicas e respiratórias —, é razoável afirmar que Jair Bolsonaro apresenta risco clínico aumentado para eventos graves, como pneumonia aspirativa e morte súbita. Submetê-lo a condições inadequadas de custódia não é apenas juridicamente controverso; é clinicamente temerário.
No mínimo, deveria ser assegurado a ele o mesmo tratamento dispensado a outros ex-presidentes da República, com respeito à dignidade humana, à saúde e às garantias fundamentais. Quando o Estado ignora esses limites, a punição deixa de ser apenas legal e passa a flertar com a irresponsabilidade.
A pergunta permanece — e precisa ser feita com seriedade: o que estão fazendo com Jair Bolsonaro?

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