JOSÉ SARNEY, ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
A violência representa um dos maiores problemas da sociedade contemporânea. Paradoxalmente ela esteve, por motivos de sobrevivência, entre as três necessidades básicas fundamentais do gênero humano, cujo controle lhe assegurou a condição de espécie mais dominante na face da Terra e de sua controladora — tudo no projeto de Deus.
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O homem, inclua-se a mulher, como deve ser a forma correta de tratamento, sempre precisaram, para sobreviver, de alimentação, segurança e vestuário. A primeira para sobrevivência física; a segunda, segurança, está ligada à primeira, para escapar dos predadores; e a terceira para poder adaptar-se ao clima, aos rigores do frio e do calor.
O instinto violento do homem fez dele, segundo Lévy Straus, além de um ser predador, o maior poluidor. Mas, hoje, a sua necessidade de segurança, uma daquelas três preocupações básicas do homem primitivo, evoluiu a novo patamar: a ameaça não é somente a individual, como também a global, com a possibilidade de destruição nuclear e a internacionalização do crime com suas conexões com as drogas e a utilização do conhecimento e da ciência para sua mundialização.
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Mas o que desejo abordar é sem dúvida um fenômeno novo: a vulgarização da tragédia do crime desprezível da violência contra a mulher. Já não podemos assistir à televisão nem ler jornais e revistas, de qualquer mídia, sem que a predominância seja a dos crimes e tratamentos mais hediondos contra o gênero feminino. Esses fatos vêm num crescendo que está merecendo, em todas as partes da Terra, revolta e protestos fortes que motivem não somente mulheres, mas também todos os homens, pois esses foram destinados a compartilhar a felicidade da igualdade com a mulher, fazendo parte um da vida do outro, igualmente responsáveis por dar continuidade à espécie humana. É inaceitável que a ameaça à sobrevivência das mulheres venha do próprio homem.
Acredito que, se a ciência, em todos os seus domínios, foi capaz de chegar às profundezas do micromundos dos átomos e até das naves espaciais e de nossa presença no Universo, tendo por marco inicial o homem na Lua, pode e deve também se debruçar sobre o sentimento humano para transformá-lo, pesquisando-se a raiz e os fatores dessa violência, o que está desencadeando essa tragédia de nossos dias. Não se pode excluir dessa busca o fracasso dos métodos atuais, a responsabilidade dos governos, já que eles foram constituídos e instituídos para conjurar os problemas, entre eles o da violência. Isso não pode ser feito sem uma cooperação efetiva de todos os segmentos da sociedade; e, em nosso caso, sem os diversos setores da União, dos estados e municípios, dos Poderes constituídos, Executivo, Legislativo e Judiciário — mas, infelizmente, o que testemunhamos nos últimos dias, em vez de cooperação, foi o mais condenável exemplo de falha na conduta de alguns membros desses Poderes.
Outros motivos estão à vista: a dolorosa desigualdade social, que faz com que sejam mulheres negras e de pouca idade a maior parte das vítimas dessas mãos assassinas, numa cruel mistura de misoginia, racismo e desigualdade social.
Outras causas subjetivas também nos dão uma pista. Elas vêm da literatura. Shakespeare, na sua genial construção da tragédia no seu teatro, oferece-nos um exemplo do amor deformado pelo ciúme — que sempre esteve associado ao amor doentio que rapidamente descamba para violência. É o exemplo de "Otelo, o Mouro de Veneza", em que sua esposa, Desdêmona, é vítima do seu amor e do ciúme do marido, dominado por intrigas de Iago, que, por revanche, cria uma teia de mentiras e intriga convencendo Otelo de que a esposa o traía, num romance que não existia. Ele, Otelo, mata Desdêmona, asfixiando-a, e, depois, quando descobre que não era verdadeira a traição, mata-se. A tragédia de Otelo desdobra-se genialmente com muitas nuances, mas traz também, como toda literatura genial, a oportunidade de refletirmos sobre a verdade, a mentira e suas consequências destrutivas. Esse dilema se repete na internet, com a divulgação de tantas mentiras — como fez Iago —, multiplicando-se os riscos de violência. E terminamos por não saber o que é verdade e o que é mentira. E quanto perigo há nisso!
Eu também me sinto violentado por essa violência. Recuso-me a absorver o relato completo desses fatos repugnantes. Sou forçado a tomar conhecimento desses crimes, mas me perturbam o sono e o viver.
Minha solidariedade a todas as mulheres que sofreram e sofrem nessa tragédia do nosso tempo.
Se a internet e a Igreja moderna exorcizaram o diabo, eis que ele ressurge na figura desses monstros: assassinos, espancadores e violentadores de mulheres.
