ARTIGO

A noite em que a democracia foi testada novamente

Foi um conjunto de gestos na Câmara dos Deputados que não apenas desonra o parlamento, mas fragiliza instituições que precisam de transparência, responsabilidade e debate público para atuarem com a devida legitimidade

Aprovado na Câmara, o PL da Anistia segue para o Senado -  (crédito: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)
Aprovado na Câmara, o PL da Anistia segue para o Senado - (crédito: Bruno Spada/Câmara dos Deputados)

Flávia Pellegrinocientista política e diretora executiva do Pacto pela Democracia

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

Os recentes acontecimentos na Câmara dos Deputados ultrapassam qualquer limite aceitável em uma democracia que se pretende madura. Em poucas horas, assistimos a uma sucessão de atropelos regimentais, tentativas explícitas de restrição à imprensa e uma deliberação acelerada sobre um dos temas mais sensíveis do país: a anistia aos envolvidos na tentativa de golpe de Estado que culminou nos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Foi um conjunto de gestos que não apenas desonra o parlamento, mas fragiliza instituições que precisam de transparência, responsabilidade e debate público para atuarem com a devida legitimidade.

O projeto conhecido como PL da Anistia (PL 2162/2023), apresentado sob o disfarce de "dosimetria", entrou em votação sem que os parlamentares tivessem tempo mínimo para leitura adequada de seu relatório e das suas alterações profundas no Código Penal e na Lei de Execução Penal. Além disso, a proposta causa impactos profundos sobre a capacidade do país de responsabilizar crimes contra a ordem democrática. 

A sessão avançou madrugada adentro após requerimentos de adiamento serem sumariamente rejeitados. Uma pauta que poderia — e deveria — ser debatida de forma ampla, transparente e responsável foi transformada em uma corrida para aprovar, às cegas, um texto que interessa, sobretudo, aos que tentam negociar o abrandamento e alcance da punição de seus aliados políticos.

O rito atropelado já seria grave o suficiente, mas o que antecedeu a sessão tornou a situação ainda mais alarmante. O processo foi marcado por um episódio sem precedentes e que nenhum país comprometido com liberdades fundamentais poderia naturalizar: a expulsão abrupta e violenta de jornalistas do plenário e a interrupção da TV Câmara. Tal ataque à imprensa e à transparência não pode ser tratado como um detalhe operacional, mas compreendido como um gesto que fere o coração do ambiente democrático brasileiro.

Ignorando o simbolismo e o impacto desse ato, porém, a Câmara seguiu para a votação de um projeto que toca diretamente a integridade do Estado Democrático de Direito. A mensagem transmitida ao país é perigosa: mesmo sob um ambiente de tensão institucional e sem condições mínimas de transparência, a agenda da anistia seguiria adiante a qualquer custo.

A retórica de "pacificação" usada por defensores do PL distorce o verdadeiro sentido do que significa pacificar um país após uma tentativa de ruptura democrática. Não se pacifica apagando responsabilidades, negociando penas ou tratando crimes contra a Constituição como ruídos superáveis em nome de conveniências políticas. A história brasileira mostra com clareza o preço da impunidade: ela não fecha ciclos, ela os repete. Alimenta novas crises, encoraja novas aventuras autoritárias e sinaliza que, no Brasil, ameaçar a democracia continua compensando.

Pela primeira vez desde a redemocratização, o país iniciou um processo consistente de responsabilização não apenas dos executores, mas também dos mentores intelectuais de ataques golpistas. Recuar agora significa desperdiçar um marco histórico, nacional e internacional, e, sobretudo, a chance de romper um ciclo de tolerância institucional que compromete o futuro democrático do Brasil.

O projeto segue para o Senado. É fundamental que esta Casa reafirme o compromisso do parlamento com a Constituição, com a transparência e com a proteção das instituições. A democracia não pode ser chantageada. Exige coragem, debate público, responsabilidade e a recusa firme a qualquer tentativa de reescrever a resposta da Justiça a um ataque que buscou silenciar as urnas e o Estado de Direito.

O Senado tem agora a oportunidade — e a obrigação — de reconstruir a confiança abalada, rejeitar a capitulação e reafirmar que, no Brasil, a democracia não se curva ao interesse dos que atentaram contra ela. A democracia não é negociável. E, quando começa a ser tratada como tal, é sinal de que sua defesa se torna ainda mais premente e necessária.

 

  • Google Discover Icon
Por Opinião
postado em 11/12/2025 06:00
x