ARTIGO

O elo perdido na proteção integral das mulheres

A Lei Maria da Penha é essencialmente reativa, focada na punição e proteção após o crime. O elo perdido é justamente um investimento estatal maciço no chamado "letramento de gênero"

Marco Antônio Farah de Mesquitadelegado da Polícia Civil do DF, formado em direito pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduado, mestre em gestão e doutor em economia política

A Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi promulgada em 7 de agosto de 2006, sendo resultado direto da história de Maria da Penha Maia Fernandes. Em 1983, ela foi vítima de duas tentativas de homicídio por parte de seu marido, Marco Antônio Heredia Viveros. Na primeira, o agressor lhe deu um tiro nas costas enquanto ela dormia, resultando em paraplegia. Meses depois, a manteve em cárcere privado e tentou eletrocutá-la. Apesar de o agressor ter sido condenado duas vezes, em 1991 e 1996, ele permaneceu em liberdade devido a recursos e alegações de irregularidades processuais.

O caso só ganhou solução após Maria da Penha escrever um livro e sua história alcançar dimensão internacional. Em 2001, o Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica, o que expôs uma patente e flagrante lacuna de proteção às mulheres no país. 

Entre as determinações direcionados ao Estado brasileiro, diversas foram as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, incluindo a investigação da razão do atraso processual, a reparação adequada à vítima e a intensificação da reforma do arcabouço normativo brasileiro no tocante ao tema. Tais debates culminaram na aprovação unânime do Projeto de Lei nº 4.559/2004.

Nasce, assim, a Lei Maria da Penha, que se tornou referência mundial, sendo reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três legislações mais avançadas no enfrentamento da violência contra a mulher.  Sua importância reside na criação de um sistema de proteção integral, sendo diferenciados os tipos de violência doméstica (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral). Com uma abordagem ampla, a lei estabelece uma rede de proteção e assistência (jurídica, social e de saúde), tendo criando, ainda, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Um dos mecanismos mais eficazes da lei é a possibilidade de a vítima pleitear medidas protetivas de urgência já na fase policial, garantindo o afastamento rápido do agressor e da situação de risco imediato.  Os avanços continuaram com a tipificação do crime de feminicídio no Código Penal em 2015, cujas penas e medidas para descumprimento de protetivas foram ampliadas em 2024.

No entanto, apesar disso, vivemos verdadeira epidemia nacional de casos de violência doméstica, onde o machismo estrutural e a impunidade percebida são mais fortes do que o temor à lei. Essa violência é ligada à cultura patriarcal que vê a mulher como propriedade. Nesse sentido, podemos citar, somente no ano de 2025, a nível nacional, alguns casos alarmantes.

O estado de São Paulo registrou o maior número de feminicídios desde 2015. Um caso brutal foi a tentativa de feminicídio, em novembro, na qual Taynara Souza Santos, de 31 anos, foi propositalmente atropelada e arrastada por cerca de um quilômetro pelo ex-companheiro, resultando na amputação de suas duas pernas.

De igual modo, o estado do Rio Grande do Sul atingiu o nível de alerta vermelho, com 79 feminicídios até o início de dezembro, superando o total de 2024. Aqui também, no Distrito Federal, recentemente registramos o assassinato da cabo do Exército Maria de Lourdes Freire Matos dentro de um quartel, fato que demonstra que a violência de gênero transcende o ambiente de rigor institucional.

Longe de serem fatos isolados, os mesmos comprovam que as medidas punitivas e de proteção não estão sendo suficientes para conter a violência letal de gênero. Tal se dá porque a Lei Maria da Penha é essencialmente reativa, focada na punição e proteção após o crime. O elo perdido, portanto, é justamente um investimento estatal maciço na prevenção cultural, o chamado “letramento de gênero”.

Trata-se de verdadeira educação com perspectivas de gênero, um processo de desconstrução de estereótipos, machismo e da cultura da violência. Ele ensina sobre a equidade de gênero, o respeito e o reconhecimento das diversas formas de violência.

A Islândia, país mais igualitário em termos de gênero, é citada como exemplo de sucesso. O denominado “letramento de gênero institucionalizado” islandês inclui, por exemplo, educação de gênero obrigatória desde a primeira infância, leis que criminalizam salários desiguais para trabalho de igual valor e licença parental de 12 meses (cinco meses para a mãe, cinco para o pai e dois a dividir), promovendo a corresponsabilidade no cuidado infantil. Essas ações garantem a prevenção primária da violência, mudando a cultura e resultando em baixas taxas de violência de gênero. 

O letramento de gênero, assim, é a ferramenta que ataca a mentalidade de posse (“se não for minha, não será de mais ninguém”), que deve ser uma pauta essencial no ensino brasileiro e na capacitação de agentes públicos. Somente esse avanço pode garantir que a Lei Maria da Penha seja aplicada com a perspectiva de gênero necessária, com vistas à prevenção de crimes de violência doméstica. Sem isso, a lei continuará a ser, primariamente, uma lei de punição pós-morte.

 

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