ARTIGO

Lei Maria da Penha: proteção que independe de casamento

Defender a aplicação da Lei Maria da Penha fora dos vínculos formais é assegurar que o direito acompanhe a realidade, e não o contrário

Violência doméstica -  (crédito:  Lucas Pacifico/CB)
Violência doméstica - (crédito: Lucas Pacifico/CB)

Rudyard Rios juiz de paz pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) 

Fique por dentro das notícias que importam para você!

SIGA O CORREIO BRAZILIENSE NOGoogle Discover IconGoogle Discover SIGA O CB NOGoogle Discover IconGoogle Discover

Ainda persiste, entre operadores do direito e parte da sociedade, o mito de que a Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, só se aplica quando há casamento ou coabitação formal entre agressor e vítima. Esse equívoco, fruto de uma leitura ultrapassada que entrelaça indevidamente o direito de família ao direito penal, produz graves lacunas de proteção, sobretudo diante da multiplicação contemporânea de vínculos afetivos, inclusive episódicos ou não presenciais.

Ao mesmo tempo, é imprescindível reconhecer que a tutela da mulher vítima de violência deve conviver com as garantias fundamentais do processo penal. O Estado de Direito exige que a responsabilização criminal esteja apoiada em elementos mínimos de autoria e materialidade, sob pena de erosão da própria legitimidade do sistema de justiça.

Nesse contexto, a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça  (STJ) no agravo regimental no recurso especial 3.007.741/AM (Diário de Justiça Eletrônico, 4/10/2025), relatada pela ministra Marluce Caldas, que manteve absolvição por insuficiência probatória, tornou-se emblemática. Para alguns, representa retrocesso; para outros, reafirmação das garantias penais. Sustento que a Lei Maria da Penha não condiciona sua incidência ao casamento ou à coabitação, e que a observância rigorosa do devido processo legal não enfraquece, ao contrário, fortalece  sua legitimidade.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

A própria lei é clara ao abranger a violência praticada no âmbito de "relação íntima de afeto, independentemente de coabitação". O dispositivo rompeu, de forma deliberada, com a ideia de que apenas vínculos formais ou duradouros justificariam proteção jurídica. A Constituição de 1988, por sua vez, ao determinar a proteção da família como base da sociedade, não a restringiu ao casamento ou à união estável. Convenções internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), reforçam o dever estatal de erradicar a violência de gênero em todas as suas manifestações.

A jurisprudência consolidada do STJ e dos tribunais estaduais reconhece a aplicação da Lei Maria da Penha a relações de namoro, ex-namoro ou vínculos breves, desde que caracterizada a relação íntima de afeto. O debate suscitado pela recente decisão não reside propriamente na correção técnica do julgamento, mas na dificuldade estrutural de produção de prova em crimes praticados no âmbito privado, marcados por assimetrias emocionais, afetivas e, muitas vezes, econômicas.

A violência doméstica não é um crime comum: é relacional, silenciosa e estrategicamente praticada longe de testemunhas. Exigir da vítima provas que, por natureza, ela não tem condições de produzir pode significar inverter o ônus social da dor. Não se trata de relativizar garantias penais, mas de reconhecer que elas não podem operar como licenças institucionais para a impunidade.

Como juiz de paz, que acompanha cotidianamente a realidade das relações afetivas no Brasil, observo que a violência não começa nem termina com o casamento. Defender a aplicação da Lei Maria da Penha fora dos vínculos formais é assegurar que o direito acompanhe a realidade, e não o contrário.

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a controvérsia com repercussão geral atualmente em pauta, terá a oportunidade de definir se a proteção da lei pode alcançar situações de violência de gênero mesmo fora das relações domésticas, familiares ou de afeto. Mais do que interpretar um dispositivo legal, estará em jogo a própria compreensão constitucional da violência contra a mulher.

A Lei Maria da Penha é um marco civilizatório. Sua força reside justamente em reconhecer que a dignidade da mulher não depende da forma do vínculo, mas da necessidade concreta de proteção.

 

  • Google Discover Icon
Por Opinião
postado em 22/12/2025 06:00
x