Alvo de investigações que envolvem crimes ambientais, Ricardo Salles demitiu-se ontem do Ministério do Meio Ambiente (MMA). A exoneração do cargo a pedido foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União (DOU), depois de intenso desgaste provocado pelas operações Handroanthus e Akuanduba, que o ligaram à negociações de madeira extraída ilegalmente da Amazônia. Seu substituto será Joaquim Álvaro Pereira Leite, que já atuava como secretário da Amazônia e Serviços Ambientais no Ministério, descendente de uma tradicional família de fazendeiros de café de São Paulo e que pleiteia um trecho da Terra Indígena Jaraguá (SP).
A trajetória de Salles, porém, foi marcada por conflitos, desgastes e desmontes (veja quadro ao lado). Mas, mesmo assim, ele defendeu sua atuação enquanto ministro e disse que agiu para colocar em prática o projeto de governo escolhido pelas urnas em 2018, que levou Jair Bolsonaro à Presidência. Argumentou, ainda, que a proteção ao setor produtivo e à propriedade privada têm sido “vilipendiadas” ao longo de muitos anos no país e que a agenda nacional precisa ter uma união forte de interesses, anseios e esforços. Também disse que o MMA sofreu duras críticas por adotar uma posição diferente de governos anteriores e negou irregularidades.
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Operação da PF
O ponto de ebulição para o desgaste de Salles foi quando vierem à tona os crimes ambientais investigados na Akuanduba, autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. Endereços ligados ao ex-ministro foram alvo de busca e apreensão em maio. O processo conta com um relatório da Polícia Federal que aponta graves intervenções, intimidação contra servidores, militarização e sucateamento de áreas de fiscalização ligadas ao MMA. As apurações também miram o ex-presidente do Ibama, Eduardo Bim.
No começo do mês, a ministra Cármen Lúcia, do STF, atendeu ao pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e autorizou a abertura de inquérito contra Salles. O ex-ministro é acusado pela PF de tentar atrapalhar a investigação para proteger madeireiros, segundo acusações feitas pelo delegado Alexandre Saraiva. O ministro teria atuado para impedir a fiscalização do Ibama e dos agentes federais sobre a maior apreensão de madeira da história do país.
Salles, porém, já é investigado em um outro inquérito no Supremo, da Operação Handroanthus, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, por suspeita de facilitar exportação ilegal de madeira. Na tentativa de sair do radar e tentar sobreviver no governo, nas últimas semanas ele diminuiu o número de aparições públicas, entrevistas e mesmo postagens nas redes sociais.
Com a saída de Salles, Bolsonaro perde mais um dos agressivos representantes da ala ideológica do governo. Ontem, o presidente relatou a apoiadores ter passado o dia “apagando incêndio” — sobretudo porque, também ontem, explodiram as denúncias de suspeita de fraude na negociação da compra da vacina indiana Covaxin – e não quis estender comentários sobre a saída do ex-ministro.
Como última polêmica antes de deixar o MMA, o celular do ex-ministro — apreendido na Akuanduba — será remetido aos Estados Unidos para ser desbloqueado. A determinação é do ministro Alexandre de Moraes, pois, quando foi entregue à PF, estava protegido por senha pessoal de acesso. O magistrado exigiu, ainda, que a operadora do aparelho informe dados e conteúdo de SMS, MMS, WEB, ligações e outras informações do aparelho.
Nada se altera
Maurício Voivodic, diretor-executivo do World Wide Fund for Nature/WWF Brasil, crê que nada muda no ministério com a saída de Salles. “Essa política de retrocessos ambientais não é dele, é marca do governo. Não tem motivos para celebrar. A tendência é que o substituto continue seguindo as recomendações do presidente”, salientou. Segundo nota da WWF Brasil, “trocar seis por meia dúzia não trará alívio ao país”.
Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, concorda. “Do ponto de vista da política, quem determina é o presidente. Apesar de a saída ser boa notícia, Salles foi uma pessoa que usou todos os segundos em que esteve à frente da pasta para causar mal ao meio ambiente. Foi ministro de madeireiros e de grileiros de terra”, criticou.
Para Sergio Leitão, do instituto Escolhas, “a boiada vai continuar passando, só mudou o vaqueiro. O que importa é o dono da boiada, o presidente Bolsonaro. E os interesses são aqueles que respondem à Tereza Cristina, que é a beneficiária dessa atuação. A ministra da Agricultura agora não precisa mudar legislação ambiental; ela simplesmente tem no MMA uma representação tranquila dos seus interesses”.
Já o Greenpeace destacou que a “saída de Salles foi tardia, mas necessária”. E acrescentou em nota: “A estratégia do governo para a agenda ambiental não deve mudar e, de mãos dadas com o Legislativo, vão seguir tentando avançar na desregulamentação da proteção ambiental e dos povos indígenas”.
Desafeto por ter perdido o cargo depois que denunciou o ex-ministro ao STF, o delegado federal Alexandre Saraiva ironizou a saída de Salles. “E eu continuo delegado da Polícia Federal”, escreveu no Twitter. E acrescentou: “Eu avisei que não ia passar boiada”. (Israel Medeiros, Ingrid Soares, Renato Souza e Fabio Grecchi)
Dois anos e meio de polêmicas, ataques e desmontes
1) Fundo Amazônia
Desde que Jair Bolsonaro assumiu, ficou clara a guinada na política ambiental. Por inspiração de Ricardo Salles, o presidente, o vice-presidente Hamilton Mourão e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno (foto), fizeram vários ataques aos recursos destinados pela Alemanha e pela Noruega para o Fundo. A verba era gerida pelo Departamento de Meio Ambiente e Gestão do Fundo, do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) — cuja administradora, Daniela Baccas, funcionária de carreira da instituição, pediu demissão devido às suspeitas levantadas peloo Palácio do Planalto à aplicação do dinheiro, tachado pelos palacianos de “esmola”. O Fundo financiava projetos de pesquisa e de geração de emprego e renda na floresta. Respectivamente, os governos norueguês e alemão repassaram, ao todo, mais de R$ 3 bilhões e pelo menos R$ 192 milhões — sem considerar R$ 17 milhões da Petrobras. Mourão reativou o Fundo, mas os financiadores europeus não se manifestaram.
2) Contestação dos dados do Inpe
Ao divulgar relatório que apontava o aumento de 88% nos índices de desmatamento da Amazônia, em junho de 2019, em relação ao mesmo mês de 2018, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais foi duramente desacreditado por Bolsonaro. O então diretor Ricardo Galvão (foto) rebateu o presidente com veemência, confirmando o que o Inpe levantara — e foi substituído por Darcton Damião. Salles defendeu a tese de que os dados da instituição eram imprecisos, no que foi endossado por Augusto Heleno, que disse serem as informações “manipuladas”.
3) Monetização da Amazônia e desafio a DiCaprio
Com sucessivos recordes de desmatamento, Salles defendeu que a solução contra a exploração ilegal da floresta e do solo seria “monetizar” a Amazônia. Ou seja: a ampliação de atividades como garimpo e extração de madeira. Além disso, o ex-ministro cobrou do ator Leonardo DiCaprio — acusado por Bolsonaro de “tacar fogo” no bioma, financiando ações “ilegais” — investimentos na preservação da floresta.
4) Boi bombeiro
Em audiência no Senado para discutir as queimadas que devastaram o Pantanal, em 2020, Salles endossou a tese da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, de que o aumento da criação de gado combateria o fogo, pois reduz a produção de matéria orgânica no bioma. Foi severamente criticado por ambientalistas brasileiros e do exterior, que responsabilizam a expansão da fronteira agropecuária no Pantanal pelo avanço descontrolado dos incêndios nos últimos anos.
5) Chance de passar a boiada
Na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, Salles recomendou a Bolsonaro que aproveitasse que imprensa e sociedade civil estavam com as atenções voltadas para a pandemia da covid-19 para “passar a boiada” — ou seja, chegara o momento de modificar regulamentos e legislações ambientais que não necessitassem de aval do Congresso. O ex-ministro e Bolsonaro sempre criticaram o “excesso” de dispositivos de proteção ambiental.
6)Choque com militares
O ex-ministro foi pródigo em conflitos com a “ala fardada” do governo. Num dos episódios, abriu uma crise ao chamar, pelo Twitter, o hoje ministro-chefe da Casa Civil Luís Eduardo Ramos (foto) de “Maria Fofoca”, por supostos vazamentos à imprensa. Com Hamilton Mourão (foto), Salles não se furtou em bater de frente: em setembro de 2020, o vice-presidente criticou a ameaça do ex-ministro de paralisar o combate ao desmatamento na Amazônia por falta de verbas; e, no mês passado, Mourão se irritou com a ausência de Salles de uma reunião do Conselho da Amazônia. “Lamento profundamente a ausência do ministério mais importante, que é o do Meio Ambiente. Não mandar representante, não comparecer, muito menos dar qualquer tipo de desculpa, vamos dizer assim. Da forma como eu fui formado, eu considero isso falta de educação”.
7) Choque com Rodrigo Maia
O ex-presidente da Câmara (sem partido-RJ, foto) saiu em defesa de Luís Eduardo Ramos e foi atacado por Salles no Twitter. Numa postagem, referiu-se ao deputado como “Nhonho” — personagem da série mexicana televisiva Chaves. A repercussão foi negativa e, por isso, o ex-ministro apagou a postagem, culpando alguém que “se utilizou indevidamente” de sua conta na rede social.
8) Operação Handroanthus
Em abril, Salles envolveu-se numa briga pública com o delegado Alexandre Saraiva (foto), que era superintendente da Polícia Federal no Amazonas, por causa da ação da PF que levou à maior apreensão de madeira da história. Mas, a pedido dos madeireiros, o ex-ministro foi ao local da apreensão e defendeu a liberação do material retido. Por conta disso, o delegado apresentou notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal (STF) acusando Salles de prejudicar a investigação. Depois disso, Saraiva foi exonerado do cargo.
9) Operação Akuanduba
Salles foi um dos alvos da ação da PF, em maio — que apura a suspeita de facilitação à exportação ilegal de madeira do Brasil para os Estados Unidos e Europa. Autorizada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, expediu 35 mandados de busca e apreensão em Brasília, São Paulo e no Pará. Gestores do Ministério do Meio Ambiente e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foram afastados. O celular de Salles, que deveria ter sido apreendido, só foi entregue à PF 19 dias depois — e assim mesmo, bloqueado por senha pessoal.
10) Mais um delegado afastado
Responsável pela Akuaduba, o delegado Franco Perazzoni (foto) foi dispensado, no último dia 17, do comando da Delegacia de Repressão a Corrupção e Crimes Financeiros da Polícia Federal no Distrito Federal. Mas, apesar de perder o cargo de chefe da unidade, ele segue conduzindo as investigações que estavam sob sua alçada, inclusive a que mirou Salles.
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