OPINIÃO

Alexandre Garcia: democracia não comporta imperadores mandando nos poderes

"Nelson Jobim me disse que os constituintes estavam sob a síndrome do autoritarismo e diminuíram poderes do chefe do executivo"

Alexandre Garcia
postado em 24/11/2021 06:00
 (crédito:  Maurenilson Freire/CB/D.A Press)
(crédito: Maurenilson Freire/CB/D.A Press)

Quem quer que leia a Constituição vai perceber que decisões da mais alta Corte não estão batendo com o que está escrito na lei maior. Essas discrepâncias vinham sendo discretamente comentadas nesses últimos tempos como alerta de algo errado. Mas, em Lisboa, num simpósio jurídico, o ex-presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, revelou, com todas as letras, o que vem acontecendo: o Supremo é o Poder Moderador da República — afirmou ele. Poder Moderador que tivemos foi na Constituição de 1824, em que o Imperador, estando acima dos poderes, podia intervir para manter a harmonia entre eles. Ele era o quarto poder. Se o Supremo, hoje, é o poder moderador, então ele abarca, ao mesmo tempo, dois poderes — mesmo sem ter, para isso, o voto, que é a origem do poder.

O Imperador não fazia ativismo político, não alterava a Constituição, não inventava leis nem mandava prender, como tuitou o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP). Ademais, não há registro algum na Constituição a erigir um poder moderador — como protestou a presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, deputada Bia Kicis (PSL-DF). O jurista Ives Gandra Martins, ao interpretar o art. 142 da Constituição, entende que esse poder é das Forças Armadas, como "garantia dos poderes constitucionais".

Não foi um ato falho do ministro Toffoli. Afinal, ele estava falando de Lisboa para o Brasil. Mais parece uma proclamação de que o Poder Moderador é o Supremo — embora sem apoio na Constituição e, muito menos, no voto. Toffoli também afirmou que o sistema de governo no Brasil é o semi-presidencialismo. Isso é verdade. A constituinte que acompanhei escreveu uma base de sistema parlamentar com uma emenda presidencial. E criou o seguinte princípio: o presidente, que tem a responsabilidade pelo governo, não tem os poderes para governar. O Congresso, que não tem essa responsabilidade, é que tem esses poderes. O presidente Sarney, no dia da promulgação, quando o entrevistei, disse: "Com esta Constituição, o Brasil fica ingovernável". Ele foi o primeiro semipresidente. Nelson Jobim, que foi o relator executivo, me disse que os constituintes estavam sob a síndrome do autoritarismo, e diminuíram poderes do chefe do Executivo.

Isso é uma usurpação da representatividade do povo, origem do poder, que o exerce diretamente ou por seus representantes eleitos — como está no primeiro artigo da Constituição. Ora, hoje, presidentes eleitos com mais da metade dos votos válidos nomeiam seus auxiliares e tomam decisões administrativas, que têm sido vetadas pelo "poder moderador". Não custa lembrar que no referendo pós-constituinte, o sistema presidencial teve 70% dos votos. O ex-presidente da Câmara, Aldo Rebelo, ex-ministro do PT e ex-PCB, no seminário do Instituto Villas-Bôas, que conduzi na última sexta-feira, pregou um governo com presidente forte, com autoridade, com democracia, "pois o Brasil não aceita ditadura de ninguém, de patrões ou trabalhadores, de militares ou do Judiciário. Só democracia".

E democracia não comporta imperadores mandando nos poderes avalizados pelo voto.

 


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