História

Para Marinha, Almirante Negro não deve ser considerado herói brasileiro

Posição histórica da Armada foi ratificada em carta do comandante da Força, Almirante Olsen, à Comissão de Cultura da Câmara, que avalia projeto para incluir João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata, no Livro dos Heróis da Pátria

A Marinha manteve, nesta quarta-feira (24/4), a posição histórica de considerar João Cândido Felisberto - conhecido como Almirante Negro - um amotinado que não merece ser tratado como herói da Pátria, como propõe um projeto de lei que tramita na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados desde 2019. João Cândido ficou conhecido por liderar, em 1910, um motim contra os castigos físicos impostos pelos oficiais a marinheiros e militares de baixo escalão, que ficou registrado na História como a Revolta da Chibata. Em carta ao presidente da comissão, deputado Aliel Machado (PV-PR), o comandante da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, ratificou a posição da Armada de que a Revolta da Chibata foi uma infâmia, um “fato opróbio”.

 

Para a Marinha, o “estopim” da insurgência “se deu pela atuação violenta de abjetos marinheiros que, fendendo hierarquia e disciplina, utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação, disparando, a esmo, os canhões de grosso calibre dos apoderados encouraçados (os mais destrutivos navios de guerra da época) contra a então Capital Federal (Rio de Janeiro) e uma população indefesa, ceifando a vida de duas crianças, atingidas no Morro do Castelo”.

 

 

A Armada, porém, reconhece que os castigos físicos aos quais os marinheiros eram submetidos foram uma “prática inaceitável e absolutamente incompatível com os caros preceitos morais observados pela sociedade contemporânea, reconhecidos como equivocados e indignos, e os insurgentes, inclusive, anistiados”. Mas, para o comandante Olsen, há “notável diferença entre reconhecer um erro e enaltecer um heroísmo infundado”.

Na Marinha, mais de 100 anos depois da revolta, João Cândido Felisberto continua sendo tratado como um “reprovável exemplo de conduta para o povo brasileiro”, e que “enaltecer passagens afamadas pela subversão, ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas e pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros é exaltar atributos morais e profissionais, que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito”, segundo o comandante Olsen.

 

Dignidade humana

Para historiadores e representantes de movimentos negros e de defesa dos direitos humanos, porém, João Cândido é um herói que, em um ato heroico, se insurgiu contra as chibatadas e os maus tratos aos quais os marinheiros da época eram submetidos pelos oficiais. O projeto que pretende inscrever o nome do Almirante Negro no Livro dos heróis e heroínas da pátria, do então deputado Chico D’Ângelo (PDT-RJ) - que não se reelegeu nas últimas eleições -, o descreve como “gaúcho, filho de escravos, que liderou a revolta pela dignidade humana em nossa Marinha de Guerra e em nosso país”. Para o então deputado, “duvidava-se que marinheiros semianalfabetos conseguissem manobrar uma das mais potentes esquadras do mundo. João Cândido não apenas realizou tal feito, como ainda o fez de maneira perfeita, do ponto de vista da guerra naval”.

O projeto conta com parecer favorável da deputada Benedita Silva (PT-RJ), mas não tem consenso na comissão, que se reuniu, nesta quarta-feira, em audiência pública, para avaliar o texto, a pedido do deputado Cabo Gilberto Silva (PL-PB), que é contra reconhecer João Cândido como herói. "Vamos inscrever no Livro dos heróis e heroínas da pátria o nome de um militar que usou, contra a nossa população, canhões de modernos meios militares, adquiridos com os recursos do contribuinte para a defesa de nossa soberania?", questiona o deputado.

Para Cabo Gilberto, a Revolta da Chibata foi um episódio “com reivindicações exclusivamente militares”, que “foram sendo reinterpretadas como uma questão racial, ideológica e de luta de classes". Essa é a mesma posição da Marinha, reafirmada na carta de Olsen. Para a Armada, “além do justo pleito pela revogação da prática repulsiva do açoite, (os amotinados) buscavam, deliberadamente, vantagens corporativistas e ilegítimas”.

 

O Almirante Negro

A presença de negros na Marinha remonta ao período colonial, quando representavam a grande maioria dos marinheiros e grumetes que serviam nas embarcações e instalações militares. Mesmo depois da Abolição da Escravatura, em 1888, eles eram constantemente submetidos a castigos físicos pelos comandantes navais, que ignoravam os apelos da sociedade da época para acabar com a prática racista de punir os subalternos com chibatadas. Na noite de 22 de novembro de 1910, eclodiu, no Rio de Janeiro, um motim de marinheiros contra os castigos físicos — página da História conhecida como a Revolta da Chibata” — comandado por João Cândido, marujo filho de escravos que entrou para a Marinha com apenas 14 anos de idade.

O escritor João do Rio, que escrevia na Gazeta de Notícias, apelidou João Cândido de “Almirante Negro” por comandar, aos 30 anos, o encouraçado Minas Gerais — maior navio da frota — e mais três embarcações no cerco ao Rio de Janeiro. Com os canhões apontados para a então capital do país, os revoltosos exigiam o fim dos castigos físicos e melhores condições de trabalho. Pressionado pela população carioca, em pânico com a possibilidade de ver a cidade bombardeada, o então presidente da República, Hermes da Fonseca, prometeu acabar com a prática e anistiar os amotinados. Assim, conseguiu por fim ao levante. A promessa, porém, não foi cumprida: após a revolta, mais de mil marinheiros foram dispensados por indisciplina. João Cândido acabou preso e desligado da Força. Ele morreu em 1969, aos 89 anos.

Em 2008 — quase um século depois da Revolta da Chibata —, o Almirante Negro foi anistiado post mortem pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 

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